Inquietação - Trampolim para o abismo

Entregue a si mesmo, reduzido a seus desejos, medos, dúvidas, certezas, sucessos e insucessos o homem se desconcerta, se segura em expectativas, não sabe se haverá continuidade do que lhe ocorre, seja para o bem, seja para o mal. Procurando certezas, garantias e respostas para manter o conseguido ou para superar o desacerto, ao se voltar para o outro - também apostando no que vai conseguir - cria expectativa. Este estar voltado para o futuro, este sair do presente gera ansiedade, é a inquietação. Estrutura-se, às vezes, comportamento supersticioso: tudo significa enquanto sinal de bem ou de mal; a capitalização, a instrumentalização são constantes. O sinal significa que o caminho está aberto ou fechado. Locomovendo-se neste universo simbólico, o real é transformado em uma mistura de passado e futuro.

Inquietação é o sintoma explicitador do vazio; é o colapso decorrente de estar no mundo segmentado e posicionado. A ansiedade gerada pelo despropósito traz medo, anseios e torcidas para que tudo dê certo, para que o mal cesse.

Neste estado, qualquer coisa é acolhedora: a droga (lícita ou ilícita) a despersonalização gerada pelo compromisso com o trabalho alienante, o agarrar-se com "unhas e dentes" ao parceiro, amante, amigo ou ao orientador religioso. Subordinação, dependência, obediência, até dedicação, são constantes nestas vivências. Sedar a inquietação é uma das mais eficientes formas de esvaziar, de desumanizar.

Entregue a si mesmo ou ao outro (sistema, sociedade, religião ou instituição) o homem não se questiona, consequentemente não se percebe integrado ou alienado. É sempre possível se questionar. Só através do questionamento podemos perceber o que é liberdade ou o que é alienação.




- "L'Angoisse et L'Homme Moderne", Heiri Steiner et Jean Gebser
- "A Nau dos Insensatos", Sebastian Brant



verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. O grande problema esta justamente na solução, no medo de fazer o questionamento e também nas possíveis respostas distorcidas
    Este é realmente o mecanismo de adoecimento da modernidade
    Muito bom o seu texto pertinente para o momento
    Beijo
    Suely

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  2. Obrigada Suely, mas a questão que abordo independe de época desde que decorre de estruturas de não aceitação e autorreferenciamento existentes na neurose. Neste blog tenho um artigo sobre a questão: "O Homem Sempre o Mesmo" - http://psicoterapiagestaltista.blogspot.com/2011/06/o-homem-sempre-o-mesmo.html

    Beijos

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    1. Vera sem dúvida, apenas eu olhei por esta vertente . Vou ler a sua indicação, só pelo titulo já concordo.bj

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  3. Neste seu texto, como em outros, sou levado a vislumbrar esse estado perceptivo pleno, livre de qualquer coisa que distorça a percepção do agora e "des-presentifique" se é que existe tal palavra. É quase uma meditação. Mas isso é possível? Por que temos que "forçar" a mente a se libertar? tenho entendido que estar mais no presente é de certa forma libertador.

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  4. Tudo o que ocorre, tudo o que acontece, tudo o que se percebe está no presente; isto é o fácil, é o instantâneo de ser percebido, não precisa nenhum esforço; entretanto a neurose, caracterizada por não aceitação e autorreferenciamento, faz com que se olhe para tras a fim de manter o conseguido etc etc e se busque sideradamente atingir focos e propósitos. Dentro disto, viver o presente é impossível: ansiedade, pânico, medo, acontecem. Basta abrir mão do que já aconteceu e não viver em função do que vai acontecer que o presente é percebido.

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  5. Oi, Vera,
    a frase de sua resposta "abrir mão do que já aconteceu" me intrigou agora...
    Sempre li o "tentar manter o conseguido" como um esforço voltado para algo maior – manter um status, uma imagem, uma posição e coisas dessa natureza. Mas abrir mão do que já aconteceu me remeteu a coisas mais simples, como instantes e pequenas vivências aos quais muitas vezes me detenho. Esse hábito de ficar nostalgicamente lembrando de coisas que já passaram é, na verdade, bem incômodo, bem alienante. Por isso soa libertador a possibilidade de abrir mão do que já aconteceu. Que bom que "sempre é possível se questionar".

    beijos e obrigada,
    Clarissa.

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    1. Oi Clarissa, a questão que você coloca é de valores: recordações maiores ou mais simples. Abrir mão está empregado em oposição ao agarrar-se com unhas e dentes. Sempre é possível se questionar se houver aceitação da não aceitação, é uma resultante não é uma possibilidade infinita.

      Beijos

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  6. Comme d'habitude, maravilha de texto Vera. A inquietação, assim como outros sintomas problemáticos, às vezes são vistos de forma positiva no sentido de gerarem criatividade, iniciativa, dinamismo, mudanças etc (são vistos assim, por exemplo, a ansiedade, o inconformismo, a própria inquietação e a loucura). Acho que esta visão vem da contra-cultura, dos movimentos dos anos 60, enfim dos históricos e necessários enfrentamentos à moral judaico-cristã. Os ídolos dos meus pais eram grandes rebeldes e entendo a admiração, o contexto histórico e a atração pela "loucura"; é como se o "bom selvagem" tivesse sido substituido pelo "bom maluco", o inquieto. Mas sempre achei tudo isto estranho, personagens muito sofridos. Quando você fala da vivência do presente - e a entendi entre outras coisas, libertadora, como alguém comentou - é incrível porque aí sim este ser livre é original, criador, espontâneo, antitético, transformador e acima de tudo "bem aventurado"… perdoe a expressão… rsrsrs.

    Você me fez lembrar uma situação: no Oriente tem uma armadilha para macacos composta de uma cabaça amarrada a um tronco de árvore com comida dentro. O macaco mete a mão aberta na cabaça para pegar a comida e a agarra, então fica preso porque não tem espaço para retirar a mão fechada. Para libertar-se ele teria apenas que abrir a mão, desistir da comida, retirar a mão aberta e sair livre, mas… eles ficam presos lá, agarrados "com unhas e dentes" para usar sua expressão.

    Passado e futuro é a nossa cabaça e precisamos de você nos dizendo isto sempre. Uma coisa interessante é que "macaco" simboliza a "mente" no Oriente.
    Abraço e obrigada

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    1. Oi Ana, quanta reflexão e informação boa você nos trouxe! Só um povo influenciado pelo budismo que prega fundamentalmente o desapego pode criar uma armadilha como esta! Você vê que tudo se relaciona, que nos mínimos detalhes a coerência pode existir.

      Abraços

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    2. Pois é Vera, você tem razão, coerência nos mínimos detalhes, uma cultura budista, o desapego... o macaco tem a chance de se libertar, tudo depende dele e não de quem armou a armadilha, é um detalhe sutil e fundamental.

      Abraços

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  7. Tem razão, Vera. Eu coloquei a coisa em termos de valor. Independentemente do valor que atribuímos à coisa, ou se agarra ou se abre mão dela, a questão é essa, né?

    Quanto a sua última frase, ok, entendi, rs.

    Beijos.

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  8. Eu vivi a inquietação e inconformismo dos anos 60 e 70 e suas palavras de ordem, como ‘é proibido proibir’ do movimento estudantil de Paris de 1968, que usou a própria proposição e seus termos para negá-la. Acho que tudo aquilo foi válido, me sinto privilegiado de ter vivido tudo aquilo. Conseguiu-se muitas concessões do sistema, por vezes a alto preço. Na época da guerra fria e das perseguições politicas muitos radicalizaram e outros embarcaram na contracultura, movimento underground, dos beatniks e hippies, e religiões ou filosofias orientais, como a Meditação Transcendental trazida ao ocidente por Maharishi Mahesh Yogi, guru dos Beatles.
    O sistema gradualmente assimilou, sequestrou e se apropriou de quase todos esses movimentos, criando uma forma de consumo cool com base neles, em geral com base em estereótipos deles.
    Houve questionamento, mas confundido com revolta e oposição ao status quo. Gerou mudanças, mas não tão profundas. Fazer oposição não é questionar, é negar, é o outro lado da mesma moeda. Achei a essência desse texto lúcido no conceito “só através do questionamento podemos perceber o que é liberdade ou alienação”.

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