Diálogos impossíveis

Pensamento é um prolongamento da percepção. Quanto mais focado na solução dos próprios problemas, na realização das próprias metas, mais árduo se torna globalizar as relações, suas sutilezas e implicações.

O indivíduo voltado para a necessidade de adquirir, de otimizar os dados relacionais, não consegue acompanhar abstrações, conceitos, teorizações filosóficas ou psicológicas; tudo para ele tem que ser palpável, útil, operacional.

Filosofar à partir do próprio contexto de vida, da própria realização de demandas é impossível. Reduzindo o geral ao específico se percebe parcializadamente. Esta pontualização cria mesmices, tautologias, desconfianças, e raivas.

Muitos dos ditos "complexos de inferioridade" se originam disto: não consegue compreender, não consegue acompanhar o raciocínio, se sente humilhado, preterido. Outro dia li que alguém disse: "sou medíocre, o que estou fazendo no mundo? para quê vivo?" Era uma busca do sentido da vida estruturada na vivência de fracasso, de frustração; não era questionamento, era queixa proveniente de não aceitação da não aceitação. Pretender estabelecer o que é devido, o que é válido, o que significa e dá sentido à vida, já traduz não aceitação, raiva e desespero, tanto quanto cria as vítimas do sistema, vítimas da família, vítimas do mundo.

Como, neste universo autorreferenciado, pontualizado pelas frustrações, se consegue dialogar?

Antes de dialogar é necessário dinamização conseguida pelo impacto gerador da quebra de certezas, é necessário questionar o autorreferenciamento, criando disponibilidade, sem a qual diálogos são impossíveis.



"O efeito sofístico" - Barbara Cassin
"Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão" - M. Foucault
"As palavras e as coisas" - M. Foucault

verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Está aí a melhor explicação que já li para a incapacidade de acompanhar abstrações! Que interessante! Sim, porque esta incapacidade aparece não só no acompanhamento de idéias, pensamentos, mas talvez principalmente, no campo das artes. Já se pensou em falta de conhecimento específico (analfabetismo, falta de familiarização com fontes artisticas e suas linguagens etc) mas as excessões são muitas e a falta de comunicação acontece em diversos grupos sejam cultos ou incultos, autóctones ou não. É como se existisse um elemento de intuição que só alguns têm… mas obviamente essa não é uma boa explicação. Explicar esta dificuldade de seguir teorizações e abstrações pelo autorreferenciamento - definido como você o define Vera - foi a melhor coisa que li nos últimos tempos!
     
    Abraço

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  2. Vera,
    Que texto!!! Algumas vezes já me senti assim e lembro que somente com os questionamentos terapêuticos a "coisa" andou.
    A leitura de cada texto, é um novo entendimento das suas colocações e reafirmações das possibilidades de enfrentamentos dos problemas.Certo?
    bjos
    Ana Cristina

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  3. Vera,
    fiquei intrigada com a frase "é necessário questionar o autorreferenciamento". Constatá-lo a partir de experiências pessoais não necessariamente implica aceitação desse autorreferenciamento, correto? Visto que continuo e continuo me vendo em situações nas quais me tenho como referência e não dou conta de ver muito além disso, posso deduzir que continuo não aceitando a não aceitação e tal, ok. Mas aí me pergunto: como questionar o autorreferenciamento? Alguma forma além da psicoterapia?

    beijos.

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    1. Oi Clarissa,

      "Antes de dialogar é necessário dinamização conseguida pelo impacto gerador da quebra de certezas, é necessário questionar o autorreferenciamento, criando disponibilidade, sem a qual diálogos são impossíveis."

      "Antes de dialogar..." esta frase é fundamental; claro que o autorreferenciado quer conseguir, quer acertar, o que impede se deter no problema, por isso, "antes" é um aviso que obriga, que pode levá-lo a se deter. Como escrevi na citação acima, este impacto quebra as certezas.

      Quando a pessoa tem problema, é o problema, isto é um "must" não pode ser esquecido, é um ponto de partida para tudo, esta pausa, este se deter no autorreferenciamento é uma maneira de se encaminhar para mudanças, não é uma outra forma além da terapia, mas é um caminho mais limpo para chegar a ela.

      Bjs

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  4. p.s. Digo, alguma forma além da psicoterapia com vc, que mora aí em Salvador, rs.

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    1. Eu morar em Salvador pode ser um impedimento tanto quanto um álibi.

      Bjs

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  5. Ri um bocado com seu comentário, rss. Vc tem toda a razão! Um questionamento que vc me trouxe agora....

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