Embustes

Comprometidos com o que precisamos superar, alcançar, construir e realizar, deixamos de viver o dia a dia, o presente. Reféns do futuro, não sabemos quem somos, mas sabemos o que queremos e precisamos. Essa transformação das estruturas ontológicas - do ser em querer - nos transforma também em massa de manobra. Contextualizados na família, sociedades, épocas e economias geradoras de educação, formação e oportunidades, somos assim, representantes desses contextos formalizadores. A profissão, o nome (rendimento) da família, o status institucional (social e econômico) além das inserções midiáticas, permitem poder e sucesso. Esse é o panorama da sociedade contemporânea, conhecida essencialmente como de consumo, resultado da fase do capitalismo fundamentada na economia de mercado. Os bens de produção  são agora transformados em vetores, construtores do mercado, este grande parque onde são definidas as diferenças entre explorados e exploradores, ou entre quem consome e quem não consome, quem tem e quem não tem.

Este momento socioeconômico gera estruturas psicológicas nas quais ainda é mais elucidativo o lema e a meta do querer é poder, desenvolvido e realizado pelos sobreviventes robotizados em função dos desejos de conseguir.

A manipulação e construção de identidades - bem conhecida nos estudos antropológicos - o estabelecimento de reivindicações de direitos busca construir superestruturas anódinas e anômalas. A luta pelo ter direito a ter direito, o querer receber espaços sociais e públicos porque outros os têm, aumenta e complica a legitimidade, amplia as possibilidades democráticas à medida que aniquila as individualidades.

Querer não é poder, essa sinonímia partiu de uma distorção inicial ao se transformar o ontológico em volitivo. O ser humano não é um ser de demandas e desejos, ele tem necessidades e possibilidades e isto é intrínseco ao seu processo do estar no mundo. Somos organismo com necessidades e também  estruturante de individualidade relacional; somos constituídos pelo semelhante, pelo outro, graças às possibilidades de estabelecer diálogo, de perguntar e responder, de significar.

Quando o ser humano deseja e quer em função de contextos, por meio de perguntas e respostas ele exerce diálogo com o outro, com o mundo. Quando o ser humano deseja e quer em função de mercados, de modas e regras, ele monologa, ele não dialoga com o outro nem com o mundo. Seguir os dados, acompanhar as regras do que vai trazer satisfação ou insatisfação, esteriotipa. Exemplos caricatos podem ser baseados no desejo de ser igual, de imitar os poderosos e ricos: todos precisam viajar, então vamos viajar, o mercado oferece desde os cruzeiros aos passeios rurais; da mesma forma, fazer com que mulheres lutem por igualdade, que tenham os mesmos direitos que os homens, buscando fazer coisas independente de sua estrutura orgânica. Na esfera social, querer direitos para os quais não existe o processo histórico, uma estrutura que os justifique, é também alienador. Processos são processos, a imanência de suas estruturas determina suas permanências e impermanências. Processos utilizados para estabelecer resultados, realizações e propósitos são sempre violentadores à medida que falseiam e destroem.

"Falar a mesma linguagem" é uma estratégia usada pelo vendedor, falsos profetas e pretensos cuidadores, seja do físico (médicos) ou do psíquico (psicólogos, psicoterapêutas, orientadores). Esse se lançar sem condições é um pulo no abismo, causador de grandes males - aumenta as ilusões - estabelece o faz de conta, o engano, destruindo ao realizar as demandas de mercado. São as vítimas criadoras de outras vítimas.







- "Grundrisse" de Karl Marx
- "Sens et Non-Sens" de Maurice Merleau-Ponty



verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Perfeito !!!
    Viver é se questionar a todo o instante ....estamos sempre prontos a cair na armadilha do sistema para sobreviver...mas não ser...o que gera insatisfações ,tristezas, deslocamentos de todos os tipos.

    Como ser livre e viver nossa individualidade verdadeira ??
    Muito bom o artigo!!
    Bjsss

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Ana, para ser livre é necessário neutralizar o que compromete; este processo resulta de autonomia possibilitadora de aceitação e transformação de limites.

      Beijos, Vera

      Excluir

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