Cotidiano e repetição
Não é a mesmice, o que tem que ser feito, que configura o cotidiano. Cotidiano é o que acontece todos os dias. Frequentemente o cotidiano é percebido como o que anda sozinho, como o que é mecânico, o que decorre de pequenos acenos ou apertos de botão. A certeza da repetição intrínseca ao que é cotidiano, o transforma em manutenção. Tudo que é mantido, que é repetido, é alienador.
Fazer todo dia o que se faz, de dormir a trabalhar ou divertir-se, pode ser vivenciado como manutenção, automação ou como participação e enfrentamento. Participação pressupõe o outro, o mundo - é um potencial dinâmico de encontro, de desencontro, de deslizamentos e imobilizações. Nada se repete, tudo que é igual pode ser diferente.
Qualquer vida se desenrola no dia-a-dia, é o processo cotidiano do estar no mundo. É uma repetição monótona e previsível quando estamos dedicados a manter e é uma aventura diária, constante, nova e excitante se estivermos dedicados a perceber e unificar as contradições continuamente existentes.
Filósofos podem dizer que quando o cotidiano é enfocado como pergunta ele é um tesouro inesgotável, ao contrário de percebê-lo como resposta, caso em que ele gera tédio, repetição.
Grandes sábios iogues diziam que a maneira de sair deste mundo contingente e material é a ele se dedicando - é o Karma Yoga*, ação que leva à transcendência, ao desapego, à libertação; neste sentido, ação é a própria vida que vai permitir a transcendência se pautada no Dharma*, em outras palavras, na coerência e aceitação de limites.
Cotidiano é a contingência, a circunstância que permite transcendência, tanto quanto pode esmagar e alienar; tudo vai depender da atitude voltada para realização de necessidades ou de possibilidades.
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* Karma Yoga - literalmente 'yoga da ação'. Karma vem da raiz sânscrita 'kri' que significa 'agir' e yoga significa, no sentido clássico, concentração. No yoga de Patanjali, karma yoga é a ação concentrada, ação pela ação sem expectativa de resultados, sem desejos pelos resultados da ação.
* Dharma - existem várias acepções para dharma, uso aqui no sentido de disciplina, aceitação da própria condição de ser no mundo.
- "Buddhist Wisdom: The Diamond Sutra and The Heart Sutra" by Edward Conze
- "Filosofia da História" de G.W.F. Hegel
- "Yoga Philosophy of Patanjali" by Patanjali
verafelicidade@gmail.com
Oi Vera,
ResponderExcluiro Yogasutra nos fala de três aspectos de Kriya Yoga (que, ao meu ver, é o que outros textos chamam de Karma Yoga). São eles: tapas, svadhyaya e isvarapranidhana.
O que tu entende por "isvarapranidhana"?
abraço.
Oi Diego,
ResponderExcluirKarma Yoga é o 'pano de fundo' de todo o yoga, presente nas discussões antigas e contemporâneas dos Yoga Sutras.
Sim, Kriya Yoga, primeiro sutra do segundo capítulo do Yoga Sutra, sugere 'tapas', 'svadhyaya' e 'isvarapranidhana' e este último literalmente significa 'rendição a Isvara' ou tornar Isvara o motivo das ações. Em muitas interpretações, tendendo a teismo, tomam Isvara como Deus e entendem 'isvarapranidhana' como submissão a Deus. Para mim, coerente com o sentido clássico do Samkhya-Yoga, 'isvarapranidhana' é aceitação do ser no mundo, neste sentido, Isvara é vida.
Abraço,
Vera
grato Vera.
ResponderExcluirAchei muito esclarecedor esse teu artigo, e essa tua resposta.
Mais uma pergunta: tem algum texto de Samkhya que tu sugere para melhor compreender Isvara dessa maneira que tu apresenta?
Oi Diego,
ResponderExcluirO Samkhya de Kapila propõe 25 princípios para descrever a existência; o Yoga de Patanjali absorve o Samkhya e propõe um 26º princípio: Isvara. Assim muitos se referem a este sistema filosófico como Samkhya-Yoga, mas o conceito de Isvara é de Patanjali, é do Yoga. Como eu disse antes, para teístas, Isvara é Deus e para ateístas, Isvara é o "processo da vida". Entender Isvarapranidhana como aceitação do ser no mundo ou 'rendição ao processo da vida' é conclusão minha a partir de várias leituras e conversas com filósofos indianos. Não tem um texto específico sobre isto. Um livro de Samkhya que gosto muito é "The Samkhya Philosophy" translated by Nandalal Sinha.
Abraço,
Vera