Isolamento

Heidegger dizia que o ser-deixado-vazio é a experiência essencial do tédio e da solidão.

Penso que o ser não esvazia, desde que o ser é uma possibilidade de relacionamento e quando conceituo ser como possibilidade, estou falando de processo, de trajetória; entretanto, todo relacionamento gera posicionamentos, geradores de novos relacionamentos que por sua vez geram novos posicionamentos, indefinidamente. Em outras palavras, o movimento, ao exercer sua trajetória, estrutura posições, aparecem referenciais, contextos e estes contínuos intervalos criadores de novas relações são responsáveis pela estruturação do vazio. É como se tivéssemos sequências alternantes, onde os pontos de junção são também de separação.

“O vazio é intrínseco ao processo relacional. A relação estrutura o vazio à medida que estabelece posições pois a continuidade da dinâmica, do movimento é possibilitadora de infinitas antíteses. Cada ponto de junção é um ponto de separação, isso porque ponto nada mais é do que interseção… Quando esse processo do vazio se torna pregnante, quando ele deixa de ser fundo estruturado, quando ele passa a ser figura percebida surge a possibilidade do ser humano continuar a sua dinamização relacional ou eternizar o seu posicionamento, estabelecendo-se na sua ilha de vazio. Literariamente poderíamos dizer que o vazio é um oásis - passamos por ele -, ou uma ilha - moramos nele.” *

Tédio, falta de motivação decorrem de posicionamentos, defasagens geradas por metas representadas por desejos e ganâncias frustradas. Só há motivação enquanto vivência presentificada. Quando se vive por (passado) e para (futuro) instala-se a monotonia do equilíbrio, da pendularidade entre estes polos, substituindo as espontâneas respostas e expressões diante do que ocorre e do outro; isto gera falta de motivação, desde que os focos objetivados (desejos e metas) polarizam todas as necessidades e possibilidades relacionais.

Enquistados e posicionados, os relacionamentos acontecem através de propósitos agregadores/desagregadores dos que estão se relacionando. Não há mais a integração entre dois indivíduos. O que surge é entrosamento de dois indivíduos em função de uma outra situação ou pessoa, ou seja, o objetivo comum é o que agrega ou desagrega. Esta somatória parcializa encontros, esvazia ao transformar os indivíduos em ingredientes, partes necessárias à consecução de suas demandas; atingir, por exemplo, o prazer, a felicidade, a tranquilidade é o que motiva. Acontece que a motivação não é um prévio, não é um programa, ela é o que resulta do encontro com o outro, com o que nos contextualiza. Programar o bom, evitar o ruim, correr atrás do necessário, ancora possibilidades.

Isolado, sozinho, só resta construir pontes de acesso aos castelos sonhados e/ou imaginar nirvanas paradisíacos. Solidão, tédio e isolamento decorrem da onipotência em se sentir separado, responsável absoluto pelo que lhe possa acontecer.

Relacionamento é dinâmica, mas infelizmente explicações causalistas, que reduzem o todo às partes, persistem na abordagem psicológica. Encontro é transformação. Autorreferenciamento e objetivos em comum impedem esta integração - encontro - que só acontece quando há disponibilidade. O autorreferenciamento, o estar contido e preso aos próprios referenciais, transforma o outro em mero objeto satisfatório/insatisfatório, possibilitador/impossibilitador; isto quebra a dinâmica, gera falta de motivação, posicionamento criador de desejos preenchidos ou frustrados.


* “A Questão do Ser, do Si Mesmo e do Eu”, pag. 80, Vera Felicidade de Almeida Campos















- “Ser e Tempo” de Martin Heidegger
- “A Questão do Ser, do Si Mesmo e do Eu” de Vera Felicidade de Almeida Campos


verafelicidade@gmail.com

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