Normatizar e normalizar

A frequência e incidência de determinados fatos e comportamentos cria valores sustentados pela persistência de suas ocorrências. Essa frequência, com o tempo (incidência de sua ocorrência), se reveste em significado, em valor. O frequente é o normal, é o constante, o encontradiço, o familiar e consequentemente, é o diferente do estranho, do novo e até do ruim. Em geral as pessoas sinonimizam bem-estar com familiaridade, segurança com previsibilidade, organização com padronização e assim, buscam ajuste, normatização. Criar medidas, criar escalas é uma maneira de neutralizar o qualitativo, tanto quanto dele se apossar ou ainda com ele se relacionar.

A incidência da violência, por exemplo, a normatiza, a transforma em constante presença no nosso dia a dia; assaltos têm se tornado comuns, evita-se sair para passeios com bolsas, carteiras, relógios, jóias e até mesmo com bijuterias. Não considerar a possibilidade da violência é uma inadequação, um alheamento que custa caro, muitas vezes custa a vida. Enganos, traições e mentiras também foram normatizadas, são adensamentos modais, são frequentes. Esperar o pior, o desleal e traiçoeiro, tornou-se normal em todas as esferas. 

Medo e desconfiança, dificuldade de entrega e de participação começam a preencher nossas ocupações e preocupações. Tensão, tédio e estresse surgem e ao tornarem-se impeditivos, profissionais são procurados, suas avaliações e medidas fazem com que o indivíduo caia em alguma escala que determina o peso da sintomatologia: é um encontro fragmentador. Reduzido à quantidade, os sintomas são escalonados, desaparece o humano e surge o robô quantificado e tratável por meio de procedimentos-padrão. A medicalização subtrai o subjetivo ao transformar o sujeito em objeto normatizável pela ingestão de substâncias químicas que o aplacam, que o sedam e, assim, as camisas-de-força (do início do século XX) estão espalhadas, não é mais preciso estar internado em hospício para ser contido.

As minorias desconsideradas e oprimidas, que agora têm voz e vez, saem das escalas restritivas e ampliam seu universo, mas ainda estão submetidas a normatizações para conseguir consideração.

Universos valorativos e maniqueistas precisam de limites, não importa se amplos ou restritos, mas, transcender limites, ampliar universos, impedir quantificação do qualitativo é o que se impõe se quisermos dignidade e humanidade. Por isso reflexão e questionamentos são fundamentais para que se possa dizer que ser livre é não ser quantificável, normalizável, normatizável. Não há sentido em classificar, em estabelecer interpretações e tipificações para o humano, em atribuir-lhe valores como: o são, o doente, o louco, o rico, o pobre, o normal, o anormal.

Somos seres no mundo em relação com os outros e o que nos define é o exercício de nossas possibilidades ou a submissão às nossas necessidades, mesmo que configuradas e legitimadas pela ordem geral vigente.


















- “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders” – DSM
- “O Processo de Sócrates” de Claude Mossé


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. rigor e clareza totais

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    1. Obrigada. Clareza e rigor são sempre necessários às reflexões.
      Vera

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  2. Olá, Vera, pelo que li neste seu artigo (desde já me perdoe a ousadia) o compreendi assim:

    Neste universo, suscintamente, há mister duas inteligências:
    A – A quantitativa e finita
    B – A qualificativa e infinita

    A maioria dos humanos vive sob o domínio da A, onde todos são basicamente instruídos por FATORES DE ORIENTAÇÕES VISIVEIS. O que os leva a se encontrarem num ESPAÇO (eu e cósmico) DIMENSIONAL (bi, tri...) limitado e limitante, normatizado e normatizante, normalizado e normalizante... - essencialmente, portanto, quantificável. São aqueles humanos que praticamente só vêm o que valorizam (ou melhor, apenas o que os Meios Informativos e formativos - sob o domínio da inteligência A - os programaram a valorizar)... E quase todos assim - aí se tornam aquele tal “robô tratável através de procedimentos-padrão”, como você escreve.
    Mas... há também aqueles humanos, em minoria, que ultrapassam o domínio da inteligência A e se põem sob o domínio da B... São os instruídos não só por FATORES DE ORIENTAÇÕES VISIVEIS, como também por FATORES DE ORIENTAÇÕES INVISIVEIS (os do âmbito da espiritualidade, da religiosidade, da profunda meditação e reflexão, de sérios e profundos questionamentos)... O que os leva a se encontrarem também num ESPAÇO (eu e cósmico) ADIMENSIONAL; cujo limite, norma e normalidade - é os lançarem a uma visão mais profunda e melhor avaliativa e valorativa na transcendência e infinito de si mesmos e de todas as coisas... num ESPAÇO, portanto, mais qualificativo. E estes são, agora, aqueles humanos que não só vêm o que valorizam, mas valorizam tudo que vêm!... Pois, sabem e aceitam que tudo e todos estamos relacionados... Que tudo e todos dependemos uns dos outros...

    José Cerdeira

    www.facebook/josecerdeira2014

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    1. Olá José Cerdeira,
      Nego tipificações e explicações valorativas do humano. Leio em seu comentário, tipificações e valorações. De qualquer forma, obrigada por comentar.
      Vera

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