Comemoração

Comemorações sempre necessitam de um denominador comum, algo que aglutine, nem que seja a ordenação sistemática dos arquivos estabelecidos pela memória.

Nas grandes comemorações coletivas, comemorar é estar direcionado para um mesmo ponto - Natal, início de novo ano, vitórias em campeonatos, etc -, é o polarizante que põe tudo entre parênteses. Pôr entre parênteses - a epoché husserliana - é a maneira de estar totalmente voltado para o que se percebe, sem se perder em nenhuma outra aderência, nenhuma facticidade, sem se perder em nada que fuja do que está sendo enfocado. Esta harmonia, esta unicidade de propósitos, é quase impossível de ser mantida.

Rituais que envolvem o sagrado (dos ordálios aos batismos), das sociedades tribais às modernas, se mantêm pela expectativa dos benefícios resultantes de suas realizações. A promessa de ganho e proteção é o polarizante permanente, que acena para a observância e consequentemente, para a preservação coletiva de tais rituais.

A festa de Natal há muito tempo perdeu o sentido religioso e se tornou um evento universal, existindo mesmo em países budistas, hinduistas etc. As comemorações do Natal, do Réveillon, do Mundial de Futebol esgotam-se em si mesmas, nada prometem, são efêmeras, se perdem no instante dos presentes trocados, dos ponteiros que se encontram ou dos gols sinalizantes. Esta transitoriedade, este efêmero, impermanente, ameaça a própria comemoração e para mantê-la, surgem as amarras ritualizadas onde regras se impõem, como: as vestimentas, o tipo de comida, compromissos familiares, etc.

Comemorações preenchem e esvaziam pela própria dinâmica que as constituem. Pôr a realidade entre parênteses é uma atitude impossível de ser mantida e ainda, as ritualizações, as amarras para segurar a realidade posta em suspensão, são frágeis, tornam pregnante a moldura da comemoração em detrimento do que é comemorado, uma inversão do que se deseja comemorar, como diz Kafka, todos viraram mensageiros sem ter quem escreva as mensagens. Repete-se, mantém-se e consequentemente, não se sabe o que está sendo comemorado.

Comemorar é sublinhar, não é recortar, tampouco é exibir peças que foram homogeneizadas por aglutinações subordinadas e manipuladas em outros ritos geradores, como os de mercado e das redes sociais, por exemplo.





















- “Feliz Ano Velho” de Marcelo Rubens Paiva
- “Rituais ontem e hoje” de Mariza Peirano

verafelicidade@gmail.com

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