Ingenuidade
Não estabelecer correlações com outras percepções, não realizar continuidade no que está acontecendo, não considerá-lo sinal de situações anteriores ou de situações futuras, é tornar suficiente o percebido. Este se deter no percebido não significa tolice, pouca inteligência ou dificuldade na apreensão de relações. A vivência das situações são suficientes, são percebidas enquanto elas próprias ou são percebidas como significando sinais, indicações, provas do que não é mostrado, do que é apenas insinuado.
O pregnante, o denso é o que é privilegiadamente percebido. Quando o pregnante é o pontilhado, é o fragmentado, é o interrompido, seu contexto - fundo estruturante da percepção - é outro. Perceber o que acontece como sinal indicativo de outras percepções, de outros acontecimentos é estar motivado para situações diversas das que estão ocorrendo. Esta confluência de percepções gera constatações (percepção da percepção), frequentemente responsáveis por distorções em relação ao que está acontecendo, desde que geradas em outros contextos, apoiadas em acréscimos resultantes de outras constatações.
Nas vivências caracterizadas por ingenuidade, por inocência, apenas se assiste, se vivencia situações sem denominá-las, sem categorizá-las. Esta aparente anomia deixa o indivíduo disponível para o que ocorre e assim ele vai percebendo as implicações dos processos. Crianças geralmente exemplificam estes comportamentos de ingenuidade, de inocência. A continuidade dos acontecimentos permite constatação e nesta sequência a inocência é quebrada, surgem hábitos, expectativas, medos e certezas.
Certezas resultantes de preconceito, geradas no autorreferenciamento, tornam tudo nebuloso e ambíguo, e assim, o que acontece, o que é percebido, está sempre sinalizando outras informações. A ideia de que sempre há algo atrás, algo causando ou determinando o comportamento, passa a ser constante e aí, paradoxalmente, a certeza cria desconfiança, insegurança.
Pressentimentos e intuições também dificultam a percepção do que ocorre. Agregar novas percepções, continuar fatos (percepções) anteriores, acrescenta valores e é um meio de criar ambiguidade, falta de nitidez ao percebido.
Certezas, pressentimentos, intuições, não convivem com a disponibilidade, impedem a entrega a situações vivenciadas. O amor sem pressentimentos, o acreditar sem verificar, o não controlar, são situações típicas de inocência, características também de ingenuidade que, por ampliação restrita das constatações, interpretações e vivências, consegue se deter no percebido.
Ingenuidade é abertura ao que está ocorrendo, é estar polarizado pelo que é percebido, sem questionamentos, sem dúvidas. A manipulação da ingenuidade através da boa fé e da entrega, da crença em relação ao que está ocorrendo, é frequente. É preciso não esquecer que é através da ingenuidade, de aberturas e entregas ao novo, que os processos de criatividade são organizados.
- “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector
verafelicidade@gmail.com
Parece que o que liberta pode aprisionar. Contra a o que se tem por ingenuidade em geral, existe o 'ser bom não é ser besta' e o 'confio em Alah mas amarro meu camelo'.
ResponderExcluirCom certeza, Augusto, mas a depender dos denominadores que se use, utilidade, pragmatismo por exemplo, as valorações atingem a ingenuidade e a sagacidade.
ExcluirRealmente, ingenuidade não é excludente de sagacidade nem sinônimo de burrice.
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