Uso, fé e vazio

Acreditar no outro pode ser também abrir mão de si ou transformá-lo em um instrumento útil e necessário. Este implícito relacional cria impasses vivenciados como geradores de ansiedade. Geralmente não há questionamento, não se percebe as divisões, tampouco as implicações relacionais, apenas se vivencia sintomas: ansiedade, pânico, angústia. Pensar na ansiedade, pânico e angustia, como sintomas decorre de entendê-los como deslocamento de processos de divisão, fragmentação criadora de drenos esvaziadores, desvitalizadores, tanto quanto limitadores do estar no mundo, do estar com os outros.

Organizar a própria vida, às vezes, significa organizar as próprias fraquezas e dificuldades. Neste processo, confiar, acreditar em alguém ou algo é necessário, é fundamental, seja como trampolim para os grandes saltos de realização e superação, seja como apoio.

Precisar é excluir toda e qualquer possibilidade diferente das que satisfazem as necessidades. Achatado e apoiado nesta sobrevivência, se perde possibilidades de ir além do necessário ou quando se vai além, tudo está comprometido, compreendido na ordem necessária. O próprio acreditar, pensar no divino, mais que uma forma de fé ou crença, é sempre validado pela prova de garantia e resultado confirmado, e assim, o acontecido é apoio, altar onde rituais de segurança e confiança são realizados.

Toda vez que se transforma o outro ou crenças em instrumento, realiza-se um processo de coisificação, de utilização e consequentemente se estabelece um vazio, uma neutralização das próprias possibilidade, das próprias motivações relacionais. É o abrir mão de si mesmo e realizar-se nas contingências, nas circunstâncias de sobrevivência, alienando-se, despersonalizando-se em função de resultados, vantagens e conveniências. Neste caso, o outro é o apoio indispensável e assim é transformado em objeto, chave para a vida e bem-estar (geralmente, situações de luto, de perda expõem a falta do outro, principalmente como insegurança e instabilidade).

Quando ser com o outro permite integração, não há necessidade de crença, confiança, tampouco de apoio e certezas. É o presente contínuo, a vida sem quebras, são as relações que existem enquanto totalidades, fugazes ou contínuas. Elas permitem conhecimento das demandas, das diferenças, das possibilidades e limitações. É o amor, o enternecimento, o acender de luzes que mostra outros horizontes, outras configurações. É descoberta que cria novas percepções, novos interesses e motivações.



- “Glória incerta - A Índia e suas contradições” de Jean Drèze e Amartya Sen

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