Construção - desconstrução

Imersos em significados pré-estabelecidos, perdemos de vista a constante do processo significativo: tudo é construído. Bem ou mal, sabe-se disto quando se supõe um criador para todo o existente. Tautológico, circular, entretanto se vive tentando configurar o natural, o verdadeiro, o original.

Nas ciências, que tudo explicam e transformam, os axiomas, os conceitos são sempre construções, são resultados gerais de evidências arrumadas, para que possibilitem significado. Nas sociedades e famílias, tudo se constrói, desde as regras históricas dos parentescos, até os limites de deveres e direitos socialmente estabelecidos. Construir pontes, casas é uma forma de ordenar a natureza. Habitá-las supõe sempre condições outras que possibilitem isto, dinheiro por exemplo, um pedaço de papel, significado de riqueza por excelência, inefável, caso não haja escalas comparativas.

O espaço, o tempo, situantes básicos de nossos contextos relacionais, também são construidos. Representação, reprodução, virtualidade são dimensões que abrangem e decidem sobre ocorrências, sobre fenomenalidade. O que não é construído (o que é matriz, base) é a matéria-prima necessária aos desenhos, mapas, projetos de construção.

O conceito de humanidade é uma construção e, neste sentido, o homem é uma de suas partes configuradoras. Entretanto, nesta totalidade, o homem é a fagulha, o fogo, não é construído, surge de encontros.

Processos de criação enfocados enquanto origem resvalam para determinismos metafísicos. Quando Heidegger falava do Dasein - ser no mundo - ele questionava a metafísica. No universo cultural, social e psicológico, partir do homem-no-mundo e determinar sua trajetória, a formação de laços e desenlaces, é uma maneira de desconstruir determinações causalistas. Descobrir que, independente do medo, dos conflitos e ansiedades, existe um ser humano que pode contar sua história, é libertador, pois acena para a utilização das facticidades em sentido outro; agora ela é matéria-prima para explicação do construído e do desconstruído.

Recortar os processos, estabelecendo áreas individualizadas, cria significados que, embora mantendo o construído, os desconstrói pela metabolização neles realizada. Este apoderar-se, a metabolização, é a transformação que permite continuidade, permite vida. No decorrer dos processos terapêuticos encontramos estas situações e assistimos às libertações de estigmas, denominações, significados alienadores, quando as pessoas aceitam e globalizam seus processos construtores e destruidores. Relacionamento com o outro, os grandes encontros e histórias são construídos e destruídos segundo autorreferenciamento ou disponibilidade.

O próprio corpo não é mais do próprio indivíduo quando territorializado pelas várias construções e apoderações existentes. Isto é enfático, principalmente em situações terminais do corpo doente ou do corpo preparado, burilado para grandes eventos, competições esportivas, olimpíadas. O como cobrir ou descobrir o corpo é um processo alheio ao mesmo, ao próprio indivíduo, neste aspecto, substituído pelas regras dominantes das construções sociais acerca de vestimenta, e assim, tudo o que é próprio do homem, começa dele ser alheio pelas construções reguladoras da alimentação/nutrição, sexualidade, prazer etc.

A continuidade deste processo desemboca na alienação. Transformado em produto, o homem se vende, é vendido, desde sua força de trabalho à suas preferências relacionais.

Assumir a construção de sua existência, acompanhando sua construção histórica é a única maneira de personalizar-se: saber quem é, o que faz, o que deseja, tem ou espera, quando e o porquê de todo este processo.
 

“Linguagem e Psicoterapia Gestaltista - Como se aprende a falar” de Vera Felicidade A. Campos

verafelicidade@gmail.com 

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