Rejeitados

Ser sempre desconsiderado, percebido apenas como ocupante de um espaço faz com que o indivíduo aceite não existir significadamente, admita existir apenas em função de demandas, de respostas ao solicitado, ou faz com que construa motivações para ser alguém, para chamar a atenção, para ser considerado, nem que seja por indisciplina e maldade.

Ser isolado do mundo, do relacionamento familiar, ou ser julgado inútil, desagradável e prejudicial cria os submissos, tanto quanto os revoltados. É frequente nas famílias de renda abaixo da média e cheias de planos de ascensão social (metas) considerarem os filhos “uma boca à mais, um fardo” e, como tal, desconsiderados enquanto individualidade. Submetidos à diária alegação de como eles precisam retribuir o que foi e é gasto, são cada vez mais exilados do afeto, despersonalizados e programados para mais tarde retribuir tudo que receberam.

Agradecer toda a ajuda, o pão cotidiano e correr atrás da meta, da realização é uma constante esvaziadora, embora suportada em função do que vai se conseguir. Lutar para ser considerado na família e na sociedade exige trunfos, artimanhas, espertezas. Lançar mão de experiências e repertórios alheios, tudo é válido para aqueles que querem significar, parecer aceitáveis e assim conseguir consideração.

Quanto mais realizam, quanto mais conseguem, mais precisam conseguir. O poço sem fundo, o vazio da despersonalização é, assim, supostamente preenchido. A sobrevivência individual se desenvolve na busca de matérias-primas para “fazer imagens”, criar estratégias e despistes. Sempre sozinhos, nada os atinge, salvo suas imagens ameaçadas ou realizadas. Estão sempre participando de grupos e encontros idealizados, ou seja, disfarçando e negando a própria solidão, estão sempre em guarda e prontos para a ação.

Quando estes indivíduos conseguem construir tocas, bunkers de segurança, eles se transformam nos emblemas do que querem provar e são assim considerados. Não conseguindo estas construções, a segurança de um mínimo de poder garantido, estes seres se isolam em hospícios, hospitais, prisões. Sempre o impeditivo, quer dando possibilidade de participação, quer impedindo-a. As mesmas queixas e constatações constroem e desconstroem seus propósitos: sobreviver sempre à mercê de ser considerado, de significar, mesmo que seja um grande inimigo da ordem pública, um marginal, um meliante. Buscar o impossível, para eles, é uma maneira de serem considerados, é uma forma de significar, de existir.



verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Eu adorei o artigo, tive um amigo, que sentia-se assim, acabou suicidando-se, uma perda muito grande, ele me avisou, mas eu nao me dei conta, isso aumentou o meu sofrimento, ele era rejeitado por toda a familia, por ser transgenero, sei que era uma angustia muito grande para ele, e sua morte ate hoje me doi muito, pois sinto que foi uma maneira muito cruel, como a fez. Abs.

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    1. Obrigada pelo comentário. Vivenciar a constante não aceitação tem consequências desastrosas. Abraço. Vera

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