Quando a gratidão é avidez

Não querer abrir mão do que conseguiu, seja no âmbito profissional, seja no afetivo é sempre explicitado por esforço e dedicação, frequentemente traduzido por gratidão, por agradecimento pelo que conseguiu e ou por ser amado, por ser considerado e querido. Esta aparente submissão, entrega e disponibilidade, nada mais é que a expectativa de alívio diante do que não se quer perder. Neste contexto, ser grato é saber que tudo está mantido, nada se perdeu; a paz, a segurança e conforto continuam. A família que reconhece, os deuses que ajudam, as instituições que possibilitam, todos estes apoios submetem e suscitam atitudes gratas, geram agradecimento. Sentir-se grato é, assim, sempre um depois, resulta de empenhos, atitudes e desempenhos reconhecidos e gratificados. Estes processos em tempos diferentes mostram interseções que precisam ser consideradas.

Buscar sucesso profissional, querer manter satisfação afetiva pela continuidade de situações já ultrapassadas e inseridas em outros contextos, funciona como metas e desejos exaustivamente buscados, que quando atingidos geram gratidão. Depois de muito desejar, de muito se empenhar e batalhar, vem o reconhecimento, vem a justiça - a ganância é premiada e o mínimo que se espera é a gratidão. Aparentemente dispersos são percebidos como próximos e símiles: a ganância, a gratidão e a submissão.

Olhar para o céu e deduzir o além, deduzir o que está no alto é uma forma de pensar e conviver com o divino. Pedir intercessão destes poderes na vida árida e problemática é uma forma de colorir, criar expectativas, que mais tarde se constituem em inesgotáveis fontes de gratidão.

As atitudes de ganância geradas por metas de realização para superar dificuldades, desde as causadas pela pobreza às determinadas por conflitos e não aceitações, criam obstinação, comportamentos focados em resultados, focados em aplausos e reconhecimentos geralmente considerados merecidos sob forma de gratidão quando têm atendidos seus desejos antecipados, quando têm atendidas as suas ganâncias. O prévio da gratidão, quando a mesma não se estabelece no não compromisso, é a  ganância, o desejo ávido de realização e sucesso, daí ela ser sempre um depois - como apoio -  uma dissonância, quase um tique nervoso, um clichê montado para bons relacionamentos.

A gratidão só se realiza independente das interseções que a constituem quando se instala no não comprometimento. Disponível, sem apegos, sem compromissos ou metas, a atitude de gratidão é o reconhecimento do outro, do que ocorre e de si mesmo enquanto possibilidade esgotada em limites integradores/desintegradores.


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