Irreversibilidade

Sempre que acontece o irreversível, acontecem também desejos e atitudes que procuram negá-lo ou modificá-lo. Pensar em modificação do que é vivenciado como irreversível equivale a negá-lo. Esta atitude é resultante da ignorância - do não conhecimento do que ocorre - e de suas variáveis estruturantes, o que implica em distorções perceptivas. Estas distorções parcializam os fenômenos, tanto quanto os ampliam em contextos deles alheios. Vários híbridos surgem, provocando a criação de faz de conta, de ilusão responsável por configurações outras que não as existentes.

A impotência, a não aceitação do que acontece é responsável pelos deslocamentos que, procurando negar a irreversibilidade das situações, as aumentam, como as construções existentes apenas no campo do que se deseja, do que se teme, sem bases factuais. Transformar o que se quer ou o que se precisa em factualidade é uma mentira, um faz de conta complicador do enfrentamento de dificuldades. Para manter-se, outras variáveis e estruturas são invocadas: do destino aos deuses, castigos, punições e também benesses, premiações pelo que se considera válido e bom.

Culpas, medos e aspirações fantasiosas são provenientes desta atitude de negação da irreversibilidade, de negação da imutabilidade dos acontecimentos. Perdas, mortes, abandonos estão sempre a ensejar estes malabarismos. Não se conformar com o término de um casamento, não aceitar que os filhos exerçam sua liberdade de escolha, não tolerar que o apego a droga e outros vícios seja mais forte que as regras educacionais ensinadas, gera impotência, impedimentos destruidores se não aceitos como algo irreversível.

Para mudar a irreversibilidade é necessário admití-la. Nem sempre esta admissão é suficiente para transformá-la em reversível, em possível. Certos coeficientes, limites de transformação, podem ter sido quebrados, ultrapassados e aí a irreversibilidade se instala, demandando apenas ser aceita, admitida. Admitir a irreversibilidade dos processos que ocorrem ou que ocorreram é uma maneira de deles participar, conseguindo assim apreender, compreender suas configurações e aceitá-los sem justapor desejos, metas, inibições e medo.

O irreversível nos situa, é um mestre que ensina limites, exila necessidades e aumenta possibilidades. A magia do diálogo recria o outro, possibilita participação, tanto quanto faz perceber o infinito das possibilidades existentes.



verafelicidade@gmail.com

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