Cracolândia em São Paulo - Solução problemática



 
Um dos exemplos de solução problemática, consequentemente, pseudo-solução, foi o que assistimos estarrecidos, esperançosos e ameaçados, em São Paulo, na chamada cracolândia. A Prefeitura de São Paulo resolveu urbanizar áreas ocupadas por usuários de crack e ao fazer isso achava que estava também resolvendo e ajudando esses usuários, compulsoriamente levando-os à internação, obrigando-os a tratamento.

Em menos de 24 horas os craqueiros foram removidos da cracolândia original e, menos de 24 horas depois, passaram a ocupar outros locais próximos. A insurgência, a volta do sintoma foi perturbadora, deixou claro que foram desconsideradas resoluções anteriores estabelecidas com entidades médicas (psiquiátricas), sociais, antropológicas, psicológicas, que vinham sendo responsáveis por mediação, com o objetivo de conseguir estabelecer diálogo e consequente mudança.

O surgimento de impasses leva a conveniências e inconveniências, à necessidade de apreender implicações e a pontos de convergência. Afinal, no impasse, sob que ponto de vista, que contexto, as questões serão enfocadas? Considerar as necessidades da sociedade e a elas subordinar as do indivíduo, é lesivo, tanto quanto, pela exarcebada prioridade da liberdade individual, negar a ameaça e destruição dos outros é demagógico e perigoso. Esse tipo de contradição reside na velha questão, no velho dilema entre indivíduo e sociedade. Sempre que as situações ficam assim polarizadas é fundamental, e muito significativa, a mediação, o terceiro tema, o outro ponto a partir do qual as contradições são recontextualizadas.

Pensar na sociedade, nas áreas urbanas, na ordem, harmonia, paz e tranquilidade social, deixando os craqueiros em segundo plano, é transformar o outro polo - o indivíduo, o craqueiro - em objeto, resíduo que deve ser descartado, ainda que sob a forma de envio para tratamento médico. Na mesma linha de polarização, considerar fundamental e prioritário, o que deve ser feito para extinguir a dor e desespero do craqueiro, é reduzir a ação a níveis utópicos - sem condição de realização - é não pensar que ele, o craqueiro, já está em um ponto de chegada, não está em um ponto de partida.

Nem tudo é Fla x Flu, tampouco é nítido o preto e o branco, assim como as diluições em cinza não esclarecem. Mas o problema é que é preciso retirar os craqueiros, é preciso transformar a área em local seguro e para isso é necessário perder os pontos de vista particulares: o social e o individual.

Para resolver o problema, é preciso perceber que não existe confronto e que existe integração: craqueiros, cracolândia, vizinhança, área urbana, tudo está junto e integrado. Soluções podem ser atingidas caso se perceba usuários de crack e moradores na vizinhança da cracolândia como fazendo parte da mesma paisagem, sem exclusões geradas por funcionabilidades e outras ordens, como as econômicas, por exemplo. Validar a zona de convivência é sempre a melhor solução desde que não temos o direito de escolher com quem vamos coabitar na Terra. Essa é uma sábia lição dada por Hannah Arendt quando falava dos campos de extermínio, quando falava da rejeição ao outro, ao diferente seja na etnia, na religião, nas trajetórias que deixam marcas de pobreza ou, como no que tratamos aqui, os desesperados, os drogados e sem autonomia: os craqueiros. Arendt deixa claro que na vida social e política, a diversidade da população é uma condição irreversível, não escolhemos com quem coabitamos na Terra, essa coabitação antecede qualquer acordo político ou vontade deliberada de separação ou extermínio. A coabitação antecede qualquer comunidade. Naturalmente podemos escolher com quem viver, mas não com quem coabitar na Terra.

A sociedade é plenamente apta e diversa. Esse é o primeiro ponto que não deve ser esquecido. Dentro desse referencial e contexto as soluções devem ser buscadas. Se não são buscadas na diversidade, elas não resolvem problemas, apenas os escurecem com muros, paredes, campos demarcados para sobrevivência e minimização de sofrimento ou mesmo com a morte (a própria cracolândia, hospitais, hospícios, prisões).

Já é tempo de, enquanto soluções sociais, soluções macro, não cairmos em dicotomias, não buscarmos juntar elementos e ver se no final a solução aparece. O processo de mudança é longo, não se resolverá na erradicação, tampouco na convivência, mas pode começar a criar novos horizontes, novas tonalidades e diferenciações que permitam realmente resolver, e que essas soluções não gerem novos problemas. Isso não é difícil, mas é preciso dedicar-se aos problemas, ao invés de dedicar-se a escamoteá-los, escondê-los ou até mesmo utilizá-los, transformando-os em justificativa para manutenção das dificuldades e realização de outros interesses.

É sempre bom lembrar que o quantitativo nada define enquanto configuração relacional; não existe pequeno ou grande mal, existe o mal. Aos argumentos que justificam arbitrariedades políticas ou opiniões populares como “dos males, o menor” (é melhor a repressão e a força do que a morte no vício, por exemplo), contrapomos novamente uma frase de Hannah Arendt: “politicamente, a fraqueza do argumento sempre foi que aqueles que escolhem o mal menor esquecem muito rapidamente que escolhem o mal”.

Se quisermos pensar do ponto de vista do comportamento de evasão de dores e fracassos - que caracteriza o vício - sugiro a leitura de um texto meu publicado na Wall Street International Magazine em 4 de abril de 2015: Fuga - Evasão de dores e fracassos e também, na mesma Revista, o artigo Convivência - Medo e Preconceito, de 4 de julho de 2016.



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