A radicalidade do desejo

Deus ex machina - vaso grego, séc. IV b.C.


É muito fácil imaginar ou mesmo lidar com a radicalidade do desejo quando o mesmo é colocado como uma das forças motrizes da vida. A partir dessa posição podemos, por exemplo, dizer que a radicalidade do desejo é o máximo da realização humana e, ainda, que vivemos para realizar isso cada vez que caem as censuras do subconsciente e libertam-se as motivações inconscientes. Esse é o ponto de vista freudiano. O desejo é cego e precisa encontrar o caminho para realização do desejante - o ser humano.

Fora dos dualismos de interno e externo, não admitindo forças operadoras e determinantes - como é o caso dessa abordagem baseada na libido ou energia sexual/impulso vital - e entendendo o desejo como resultante de motivação, a radicalidade do desejo só pode ser entendida quando submetida a seus contextos estruturantes, e aí, falar desta radicalidade é falar de sintomas de não aceitação, é falar de carências e de falta. Nesse sentido, a radicalidade do desejo está bem próxima das explicações budistas acerca do desespero e quimeras humanas. Segundo os budistas, deseja-se o que falta, é a busca para complementar, talvez, o vazio da existência, por isso os conselhos de tolerância, abnegação, desprendimento para viver e suportar a incompletude humana, que encontramos na filosofia de Siddhartha Gautama.

O aspecto que o desejo tonaliza é o da motivação. Desejar é estar motivado, é querer. Sob o ponto de vista da Psicologia da Gestalt, o motivo não é interno, não está no organismo como pensam psicanalistas, behavioristas e funcionalistas cognitivistas. Motivo é o que está diante, é o que é percebido, é o que estrutura o comportamento motivado. Precisamos considerar também que tudo que é percebido pode estar estruturado em autorreferenciamento (referenciais individuais que se superpõem ao que ocorre, que polarizam o ocorrido em função de posicionamentos anteriores) ou pode ser estruturado em disponibilidade, isto é, presente vivenciado enquanto presente. Motivação, portanto, é entendida por nós no contexto relacional e não no do corpo (cérebro) o que implicaria em separação entre corpo e mente, reeditando assim, o velho cartesianismo.

A disponibilidade, o presente vivenciado enquanto presente, transforma o que se deseja em comportamento. A sequência comportamental, consequentemente, realiza desejos, dá continuidade aos mesmos, às motivações. É o comportamento motivado sem antecedências ou metas. Motivo, desejo, ação, tudo isso é uma só expressão do indivíduo. Nas vivências de aceitação não há fragmentação, não há desarticulação por meio de denominações ou nominações - é a continuidade sem posicionamentos, é o encontro do outro. Só se fica motivado, só se deseja no presente, se for além do presente, do vivenciado, é a priori ou meta, continuidade de outras motivações não mais existentes, que para serem sustentadas supõem divisões e posicionamentos, é a ideia fixa.

Quando surgem interrupções, limites, anteparos, a sequência motivacional, comportamental, se fragmenta. Surgem posicionamentos e assim começam as cogitações e considerações. Inúmeras estratégias e planos são estabelecidos para realizar os desejos posicionados. Muitas pontes, artifícios, artefatos são criados e tudo em função dos desejos não realizados, não atendidos, pois estruturados na esfera da não aceitação. Surgem divisões: de um lado o indivíduo e do outro seus desejos frustrados e não realizados. Nesse momento podemos falar de radicalidade do desejo: nesse processo de fragmentação, o desejo passa a ser, para o indivíduo fragmentado, a base, o contexto a partir do qual sua vida é percebida. Nesse momento, ainda radicalmente guiado por seus posicionamentos, seus desejos coagulados, ele começa a pensar como realizar seus desejos, suas não aceitações percebidas, suas demandas frustradas. Começa a arbitrar e as atitudes onipotentes são geradas pelo contínuo deslocar da impotência não aceita, pelo que vai permitir aplacar seus desejos frustrados, como, por exemplo, mudar a aparência e saber que este impossível pode ser resolvido com química, hormônio, vendo isso como solução. São artifícios que expressam o desejo, são artifícios que construindo outras realidades, criam novos artifícios. É a busca de resultados sem questionar ao que se propõe, são as ciladas do atirar para todos os lados, do desejar solução sem problematizar questões. Exemplos atuais são dados pela surpresa desesperada de pessoas que transitam pelo universo trans e de repente se descobrem grávidas, quando muitas vezes dessa condição também fugiam, assim como os que passam a ter dificuldade de orgasmo, mas escolhem essa opção, dedicando-se aos seus saltos altos.

A radicalidade do desejo é a transformação das vidas e aparências na realização de objetivos, de metas. É a perda de continuidade do existente, é o isolamento do estar no mundo operado pelas ilhas de desejo posicionado. Cercado de desejos - posições desejantes - o indivíduo se estrutura entre ser o que aparenta em oposição a ser o que é. Michael Jackson é um exemplo do não se aceitar negro, se produzir como branco, até chegar a todo um comprometimento funcional, orgânico, que inclusive, por efeitos colaterais, pode o ter levado à morte. Muitos outros exemplos encontramos na esfera econômico-social: os emergentes, os novos ricos estão aí ilustrando essas não aceitações e também na nossa massificada sociedade, onde novos mercados e paraísos são criados para os desejos de transformação do próprio corpo, das plásticas rejuvenescedoras às próteses liberadoras e, ainda, à todos os itens do consumo de tranquilidade e conforto almejados.

É preciso questionamento quando se quer mudar para que não se aumente as fileiras de seguidores de “novas ordens”, tanto quanto de consumidores do mais fácil, do mais solucionador de demandas e aparências. Mudar é fundamental, mas saber o que se muda, como e quando muda é crucial.

O desejo posicionado é um enrodilhado pontilhado no qual só se consegue perceber um ponto a partir de outro ponto e assim a radicalidade do isolamento, a radicalidade do desejo se estabelece, nada se percebendo além do próprio desejo. Dessa maneira se configuram seres sozinhos, isolados em suas próprias realizações de desejo, que nada mais significam que histórias, pontos a ressaltar.



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