O fascínio pela desgraça




Outro dia me pediram para falar sobre o fascínio pela desgraça, pela ruína, queriam também saber porque programas televisivos apelativos têm grande audiência.

Processos de identificação geram motivação. O familiar é percebido enquanto semelhante; essa semelhança é englobada como proximidade. Estas leis perceptivas - semelhança e proximidade - regem os processos da percepção, do conhecimento, consequentemente, do relacional, da montagem de estruturas sociais e psicológicas, dos relacionamentos consigo mesmo, com o outro e com o mundo.

Vivendo em condições economicamente subdimensionadas, sofrendo provações e privações, participando de cotidianos abjetos, o ser humano se motiva, se fascina pelo superdimensionamento do que lhe é próximo. Ampliar, às últimas consequências, o que está presente, limitado pelo exíguo espaço, ver como pode explodir tudo que está gestado, é revelador. Fascina. Freud explicava essas identificações e fascínios pela projeção da agressividade, das vivências recalcadas.

Não são necessários mecanismos arbitrários, pois as situações se apresentam genuinamente, não se está encenando nem produzindo títeres, apenas as situações estão ampliadas, inquestionavelmente postas, sem dubiedade. É esse esclarecimento que identifica, é a percepção do semelhante que fascina. O outro - próximo, semelhante - vive tão soterrado no dia a dia, que inexiste. Pai e mãe são agressores, predadores, ameaçam. Tudo significa enquanto ameaça, pois a condição cotidiana é de constante perigo. Quando embelezada por luzes, por molduras, por vozes e ternos bem/mal talhados dos apresentadores, surge a própria realidade de pés para cima - de cabeça para baixo - vem o fascínio: é o semelhante que está aí.

Importante considerar a desagregação criada pela desumanização: o outro só é percebido enquanto fragmentos, pedaços, restos sub-humanos, só é percebido enquanto destruição e miséria. Exatamente aí podemos entender o facínio pelo destruido, pelo destruidor. É uma recuperação dos pedaços que faltam, são os resíduos humanos reconhecidos. Lamentavel que apenas em sua fragmentação, em sua destruição, o outro se faça presente, motive e fascine. Nesses casos, ser o que o outro permite que se seja é mais um recuo aos reles patamares sobreviventes do processo, da constituição relacional como desencadeante motivacional.



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