Mutilações e realizações (BIID)
Os processos da alienação, da não aceitação do próprio corpo robotizam em relação ao mesmo, atingindo dimensões incomensuráveis e espantosas. Outro dia, lendo, fui surpreendida pelo conhecimento da Body Integrity Identity Disorder (BIID), Transtorno de Identidade de Integridade Corporal, TIIC como é conhecida em português. A BIID é rara, pouco estudada e de condição escondida, secreta. Consiste no desejo de mutilar-se e na realização de amputação de membros saudáveis (pernas, braços) ou em mutilações como provocar cegueira em si próprio ou quebrar a própria coluna vertebral. Nela existe fundamentalmente um desacerto, um desencontro, uma não aceitação entre o corpo que se deseja e o corpo que se vê. Nesse sentido, a BIID se insere em toda a problemática do desejo, meta, não aceitação, em medos e dificuldades, ou até mesmo na clássica definição de Krafft-Ebing sobre parafilias, expressa em seu livro de 1886: Psychopathia Sexualis.
O característico dessa não aceitação, dessa não integração é a transformação do corpo em obstáculo. O corpo é percebido como resíduo, obstáculo, é um outro, algo alheio a si mesmo. É enfática a fala de alguém com esse transtorno: - “perder uma perna é encontrar a mim mesmo”.
Os deslocamentos da não aceitação de si, ou seja, das possibilidades de ser - o ser é a possibilidade de relacionamento - é configurada pelo outro, por meio de relações familiares e sociais e a depender do grau de impotência e limitações relacionais, isso fica restrito ao próprio corpo, ao corpo alienado, estranho, não integrado. Das lipoaspirações às plásticas rejuvenescedoras, das ablações e inserções penianas à retirada de seios, as pessoas se submetem ao que acreditam libertador e transformador. A maleabilidade das crenças e as possibilidades de deslocamento variam em função de demandas e soluções oferecidas, tanto quanto dos avais médicos e sociais. Modificação mandibular, por exemplo, assim como as plásticas embelezadoras, não são vistas como mutilantes, são a reparação, a transformação que embeleza.
Avariar propositalmente a própria coluna vertebral, remover membros saudáveis ou até se cegar para garantir condição de incapacidade, é uma justificativa para os próprios processos de não aceitação, impotência e incapacidade frente ao mundo. Diante do espelho se percebe o que se vê como decepcionante e horrível, ou, como o que se aceita. Mudar, cortar, acrescentar, retirar se impõe diante do horror percebido. Não ter uma perna, possuir um braço pela metade traz justificativa, oferece deslocamentos e possibilidades de novas imagens, de se descobrir de outro modo, de se tornar sexualmente desejável para alguns grupos já existentes e motivados sexualmente por mutilados. É um deslocamento da não aceitação que estabelece propósitos. Passar a não enxergar - ser cego - vai mudar tudo, vai possibilitar ser cuidado, vai receber afeto, carinho, ou ainda, passa a explicar o nada a fazer, o nada conseguir.
A BIID - o Transtorno de Identidade de Integridade Corporal - é a constatação da infinidade de deslocamentos que são atingidos quando não se aceita o próprio corpo, as próprias dificuldades e frustrações. Constatar situações que são vivenciadas como insuportáveis e frustrantes requer que as mesmas sejam enfrentadas. Esse processo traz novas dimensões às percepções do que dificulta, do que atrapalha, do que não é aceito. É assim que as situações mudam e se transformam: pode perceber impossibilidades sem aceitação das mesmas, tanto quanto pode estabelecer ações que as transformem ou neutralizem. Em certos casos o limite é soberano no sentido de irreversível e essa constatação é ampliadora. Percebida sob outro contexto ela é apenas um impedimento, uma pedra passível de remoção. Onde se coloca o vivenciado? No presente, no passado ou no futuro. A temporalidade é esclarecedora. Só quando o vivenciado ocorre no presente enquanto presente, é que permite mudança, aceitação. Quando estruturado em função de metas e desejos, o limite é negado, utilizado como pretexto. Se vivenciado em contexto passado, se torna anátema, que precisa ser escondido, descartado.
Apesar de ser um deslocamento da não aceitação e estar totalmente cabível dentro de sua estrutura geradora, causa espécie e espanto o ser humano querer quebrar a coluna, amputar pernas ou ficar cego. É também eloquente como a restrição do espaço de vida, do espaço social, se transforma em propulsionador desses deslocamentos de não aceitação. A dificuldade de sobrevivência, os espaços ocupados por bilhões de pessoas e a escassez de recursos econômicos naturais, as sociedades voltadas para busca do bem-estar por meio de lucro, sucesso e acesso à tecnologia, tudo isso massacra. Cada vez mais espremidos e empurrados, só resta cair no abismo do desespero, da maldade e autodestruição.
A BIID é um alerta! Mostra a infinita capacidade do ser humano de se destruir, quando não encontra saída, quando não dialoga com as suas não aceitações.
Comentários
Postar um comentário