Densidade, liberdade e confinamento




Ir além de onde se está geralmente cria lugares imaginários, cria utopia - o não-lugar, o lugar que não existe.

O não existente, o utópico, se caracteriza por não estar ancorado em valores. O mundo sem valores, a vida sem sinalização de positivo ou negativo, de adequado ou inadequado, de certo ou errado é uma utopia. Buscar o não-valor é buscar sair de contingências, sair do limite demarcador.

Os marcos civilizatórios ajudam a sobreviver, ajudam a realizar individualização, aperfeiçoar capacidades, tanto quanto, ao estabelecer limites, criam valores e aprisionamento. Viver sem valor - que sempre é aderência ao que é configurado - seria libertador. Imaginar as sociedades sem dinheiro, regidas pelo escambo - troca do que é necessário a uns e outros - é imaginar um universo onde prevalece o denso, o que significa, independente de sua simbolização. É apenas o perceber, independente do perceber que percebe.

O perceber é dinamizado pela criação de continuidades repetidas, nas quais as próprias percepções se explicam e significam pela continuidade. É a magia da repetição. É o real, o denso tudo invadindo, é a coisa sendo o que é, independente do que significa ou simboliza. É o horizonte sem valores, o presente se esgotando no próprio presente. Não havendo continuidade de percepção, consequentemente não há pensamento. Há apenas vivência. Equivale a imaginar as sociedades não regidas por dinheiro, não regidas por valores e sim por participação, trocas e liberdade configuradoras do próprio trabalho. Marx, em seus manuscritos econômicos iniciais Grundrisse já vislumbrava excluir o valor como determinante de trocas. Sobre esse problema ele escreve em O Capital: “o reino da liberdade começa de fato só onde cessa o trabalho que está determinado pela necessidade e pela finalidade externa; este reino reside, pois, conforme a natureza da coisa, além da esfera da produção propriamente material.”

Psicologicamente pode-se atingir essa situação ao conseguir eternizar o presente. Espalhar-se no instante, eternizá-lo como continuidade e vivência é liberdade, é quebra das paredes da expectativa, medo e ansiedade. É libertador não esperar, não desejar e não ter medo do futuro. Transcender limites é a maneira de não criar novos, é sustentar-se nos próprios pés, situação às vezes improvável graças aos limites desumanizadores.

Quando as religiões prometem vida eterna, expiação dos males, evolução para e por outras vidas, elas aumentam os limites, impõem o futuro, o depois como realidade densa, e assim cada vez mais alienam o humano de si mesmo. Fé e esperança são remédios, implicam sempre em falhas, em doenças anteriores.

Estar aqui agora consigo e com o outro no mundo não aprisiona, pois liberta do medo (omissão - passado) e da ansiedade (expectativa - futuro). Essa aparente utopia é que liberta e realiza individualidades.

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