Caridade, solidariedade, amor
Ir além de si mesmo é condição básica para estar no mundo, para perceber o outro como algo diferente de objeto útil, de apoio necessário, de refrigério buscado, de ameaça ou perigo estabelecidos. Quanto maior o limite, quanto mais amarras e menor espaço, menos se tem condição de ir além de si mesmo. O que se disputa e valoriza é mais ar, mais espaço para sobreviver ou para relaxar. Ter que conseguir tudo para melhorar as condições de sobrevivência estrutura processos autorreferenciados. Sempre garantir, manter mais espaço, salvar a própria pele cria total impossibilidade de convívio com o outro, independente de vantagens ou desvantagens que ele pode trazer, criar ou resolver. Não há solidariedade, não há empatia, pois não se vai além de si mesmo.
Acontece que grupos, sociedades, só se mantêm por meio de participação, de estabelecimento de limites, direitos e deveres. Esses referenciais passam a ser os prolongamentos dos próprios desejos e motivações, e assim contingenciados os espaços são sempre ampliados. É a magia, é fazer de conta que está indo além de si mesmo, quando na realidade o indivíduo só duplica e neutraliza, por meio das instituições, regras e deveres que o representam. As instituições religiosas ensinam que é bom, que vale a pena, que o reino dos céus será alcançado se fizermos bondades. Apoiar, ajudar o próximo é moeda amealhada para entrada no paraíso, é a garantia de nele ingressar, é ter crédito, base e condição. As leis, as regras do viver em comum, em sociedade, também decidem sobre atos solidários. Escola, religião, clubes são plataformas externas para ir além de si mesmo, entretanto, como cartas marcadas, paisagens desenhadas, pouco é conseguido, pois os processos confluem para a própria melhoria e integração. As contradições são mascaradas e resolvidas por amistosas competições criadoras de vitoriosos e derrotados.
Geralmente, não se vai além de si mesmo, pois não se vivencia o presente. O que é cotidianamente vivenciado é dirigido ao que vai ser conseguido, superado. É a meta, é o futuro. Não se vai além de si mesmo, salvo como estratégia para apoiar suas bases de sustentação, seu autorreferenciamento, e assim, caridade, solidariedade, amor escasseiam.
Só por meio da percepção do outro em seus contextos precários ou contraditórios é que se descobre suas necessidades, possibilidades e impossibilidades. Só assim se pode ajudar, resgatar, ser solidário, isolar, rejeitar, amar. Essas atitudes dinamizam o existir e tanto permitem perceber as flores do pântano, quanto as lamas depositadas e escondidas no ouro e prata dos ornamentos e salões festivos. Ajudar o louco da rua, salvar o animal ferido, recusar conviver com eméritos benfeitores que estão escondendo suas próprias maldades apresentadas e exibidas como marcas de ternura, exige o ir além de si mesmo.
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