Recuperação do perdido



Recuperar o perdido é tarefa hercúlea. É o desespero mágico de ultrapassar limites: tempo e espaço. É negação do que ocorre quando o ocorrido não satisfaz desejos. A atitude de negar evidência é um dos sintomas típicos de onipotência, de achar que pode tudo e que sempre tem razão. É se sentir o Alfa e Ômega dos processos, enfocando todos os esclarecimentos e contradições dos mesmos na própria tutela, é aquele que explicita constantemente: “tenho razão, sei das coisas, não erro”. Essa atitude onipotente cria deuses, deusas, demiurgos que tudo podem, usando manipulação, esquecimentos e os mais diversos ardis que solapam o acontecido, inventam realidades, empenhando-se para ganhar lutas e recuperar perdas. Não aceitam fracassos, derrotas escolares e públicas, separam e superam amores, criam personagens quixotescos e desesperados, raivosos e tristes. Iludidos, eles não inventam moinhos de vento, mas negam as pedras do caminho, dizem que as mesmas foram colocadas para tenta-los e que vão conseguir mudar. Humilhados, embolados no desespero das perdas, ouvem apenas os cantos dos seus propósitos fracassos e desejos não atingidos.

 

“É preciso vencer, e tudo recuperar” é um refrão, um mantra perigoso e causador de mais desespero mesmo quando se configura recuperação, pois ontem não é hoje; muita coisa mudou e o significado do que permanece é sempre discutível, pois datado, consequentemente defasado.

 

Recuperar, ganhar, perder são dinâmicas alienadoras. Ao se colocar em função de resultados, o indivíduo se coisifica, ele é o que ele consegue, o que realiza, o que o frustra. Ser resultado, apostar é esvaziar-se. Metade do corpo fora da janela ultrapassando o guarda-corpo é sempre perigoso. O meio para fora, o meio para dentro configura instabilidade, desequilíbrio. É a ameaça quando se recupera o perdido, pois recuperar é perder o que está acontecendo. Quando as situações se superpõem, elas se confundem. O claro/escuro é o meio termo que confunde clareza e determinação. A determinação é sempre descoberta e nela não há perdas, nem recuperação. O novo se impõe, é a vida, é o estar diante de si, do outro, e não entre sombras e reflexos enganadores.

 

Não há amor, não há ódio que não estejam presentificados, consequentemente, a própria busca de recuperar só existe diante do que está aí, acontecendo, vivenciado, e assim não há o que recuperar, existe apenas o que situar, descobrir, configurar, reconfigurar. Nas vivências, enquanto vivências de congelamento ou descongelamento, estamos coisificados em função do que nos anula ou até mesmo nos engrandece.

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