Convencer não é questionar



 

Certo dia li uma frase de José Saramago: “Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito é uma tentativa de colonização do outro”. Pensei: convencer é arbitrário, mas questionar é o que faz mudar, é fundamental. Proselitismo não é mudança.

 

Podemos pensar em paralelas ou em ângulos. Os pontos de encontro, os pontos de atrito geram mudanças. Perceber o que acontece ao outro, o que acontece no mundo como paisagem, como filme, como obra de arte ou notícia de jornal é se colocar em andaimes ou prisões guardadas. A impossibilidade de acesso impermeabiliza. Estar presente, diante do outro, participar do que ocorre obriga a reações, a diálogos, obriga a questionamentos.

 

Regras sociais, convenções religiosas - é a vontade de Deus, por exemplo - são explicações do que se vê, do que se ouve, do que se sente, que insensibilizam. Gritos, uivos e ais exibem, no mínimo, sustos, e são mudanças de postura. Essa impermeabilização, incipiente forma de participação, tudo justifica e entende. É também uma forma de negar realidades, de inventar paraísos ou infernos redentores, informações rudimentares e generalizantes.

 

Atualmente o impossível, o genérico é a única realidade da redenção, do exercício de humanidade e transcendência: fazer, permitir, assistir o deslocamento, a manutenção das paralelas que apenas no infinito podem criar ângulos, estabelecer antíteses.

 

Só o questionamento abolirá insensibilidade, destruindo explicações polarizadoras. Inverter os pontos de encontro, o lugar para onde tudo conflui de bem e de mal é o faz de conta criador de falsas direções, que ocorre pois é a explicação, a ideia de causa e efeito configurada - buscadora de verdades - que acaba com a autenticidade, o encontro, e consequentemente com a transformação do vivenciado.

 

Não metabolizar o que não se assimila é notório nos processos orgânicos, tanto quanto é a percepção resultante dos processos configuradores do estar no mundo a estrutura dos processos psicológicos.

 

Tudo resulta do que se percebe e quanto mais emoldurado, compartimentado, iluminado, escondido ou aberto se coloque o que se pode perceber, mais endereçamentos congestionados são criados, é quase o equivalente de ter que engolir o pão de cada dia com sua embalagem. O tormento de assimilação cria medos e destrói antes de ser assimilado. Fazer com que se engula ou não, ser convencido a isso é um processo simplificador. Arrumar prateleiras pelas embalagens que escondem e atrapalham pode permitir acesso direto e condicionamentos transportáveis, úteis e até necessários, mas não se aplica à assimilação. Abrir pacotes, exibir conteúdos escondidos é o que resulta do questionamento mantido e utilizado como apoio para perceber o que não se visualiza: o saldo posicionante que aniquila individualidades.

Comentários

  1. Não entendo plenamente "Não metabolizar o que não se assimila é notório nos processos orgânicos, tanto quanto é a percepção resultante dos processos configuradores do estar no mundo a estrutura dos processos psicológicos." parece que faltou alguma coisa na segunda parte da proposição.

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    1. Dito de outra forma: assim como nos processos orgânicos só é metabolizado o que se assimila, os processos psicológicos são estruturados pela percepção resultante dos processos configuradores do estar-no-mundo.

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