A dúvida continuada dilacera

A afirmação negada que possibilita uma pergunta é a dúvida.

Este aspecto dinâmico gerado por antíteses estrutura a dúvida, desenvolvendo motivação, curiosidade. Isto nos leva a crescer e a mudar. A dúvida pode gerar desenvolvimento humano tanto quanto científico, social e filosófico.

Descartes, por exemplo, ao vivenciar a dúvida decorrente de inúmeras perguntas colocadas e negadas, chega ao ponto de duvidar da própria existência, supõe-se sonhando ou existindo sob a ação de um gênio maligno. Em suas próprias palavras: "considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado de falsa crença de ter todas essas coisas". Ele é o fundador do racionalismo e portanto enfatizava a dúvida como imprescindível na busca de conhecimento. Na continuidade de suas reflexões, ele consegue resolver a dúvida sobre a própria existência, constatando-a através do pensamento; é o famoso cogito cartesiano "penso logo existo".

Shakespeare em seu magistral Hamlet, erudito desenvolvimento de inúmeras questões: traição, fidelidade, governo, lealdade filial, medo, resume emblematicamente tudo isto na célebre dúvida "ser ou não ser"  como questão fundante e construtora do humano e da sua humanidade.

A dúvida, a depender do contexto estruturante da mesma e de quem a vivencia, pode ser transformada em conflito responsável por medos, fobias etc. No século passado, a realização ou não realização de desejos sexuais diferentes do que a familia esperava, causava dúvidas persistentes, continuadas até os dramas e as angustias existenciais, geralmente apenas esclarecidas e superadas depois de muitos questionamentos psicoterápicos.

A dúvida nos movimenta ou nos emperra. Quando ela nos detem, ela divide, dilacera, fragmenta.

Quando negamos antiteses, negamos a dúvida, mantemos o que já foi destruido, o que já não existe, fazemos de conta que nada mudou. Negamos o movimento, fugimos da dialética do universo. Esta fuga é feita através de deslocamentos, não há como destruir o movimento, mesmo parados estamos nele. Deixar para depois o que está se evidenciando, cria medo, cria pânico. Nós engendramos as dúvidas, elas são sempre resultantes de nossas vivências, não podemos ignorá-las sem nos alienar, sem nos despersonalizar.

Nos relacionamentos, a dúvida continuadamente mantida gera desconfiança do outro e insegurança quanto a si mesmo.

A dúvida* é um momento perceptivo possibilitador de relacionamento estruturante do humano ou de relacionamento desestruturante do humano. Quando se enfrenta o impasse gerado pela dúvida surgem configurações que caracterizam o humano, colorindo a existência. Quando se omite diante do impasse gerado pela dúvida, surgem desespero, alienação, embotamento da existência tonalizado pelos conflitos que escamoteiam e escalonam a dúvida para uma outra dimensão: a da escolha.

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* Extraído de meu livro "Relacionamento - Trajetória do Humano"















"Relacionamento - Trajetória do Humano", Vera Felicidade A. Campos
"Meditações Metafísicas" - René Descartes

verafelicidade@gmail.com

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