Liberdade e escolha
Quando nos colocamos a questão da liberdade é inevitável lembrar que Sartre dizia que o homem está condenado à liberdade; lembramos também que Freud ao invés de falar em liberdade, preferia falar no processo da repressão exercida pelo superego no controle dos recalques inconscientes; e quanto às doutrinas religiosas, estas consideravam o livre-arbítrio como sinônimo de liberdade.
Nos anos 60, estávamos em plena Guerra Fria, a palavra de ordem era participar, era comprometer-se com uma causa. Os "pequenos burqueses" eram os ditos alienados, deveriam se engajar para mudar a ordem capitalista vigente. Sartre misturou Heidegger e Marx - alienação com Dasein - o em si com o para si, criando novos dualismos. A necessidade da inclusão política contra o sistema valorizava a escolha.
Em 1988, por ocasião do lançamento do livro Relacionamento Trajetória do Humano, em entrevista à jornalista Rosane Santana do Jornal A Tarde, eu dizia:
A TARDE - Neste quarto livro, você diz que não existe escolha. Dá para explicar isso?
Vera Felicidade - A escolha vai estar sempre comprometida com alguma contingência. Essa contingência passa a ser necessariamente uma aderência, extrínseca a própria situação escolhida. Quando as situações forem diferentes e você tiver de escolher, você vai escolher em função de algum referencial outro, que não o da coisa escolhida. Esse referencial outro é um comprometedor, desde que ele é um orientador, um determinante de conduta. Então, no que a sua conduta de escolha fica em função de um determinante, a escolha já é uma total aderência, quer dizer, ou ela é um acaso ou é um obrigatório. No primeiro caso, aliena; no segundo, orienta. De 1960 para cá, a escolha foi uma palavra que ficou em moda, porque Sartre começou a dizer que o homem é livre quando escolhe. Isto porque as pessoas eram tão comprometidas pelas engrenagens do sistema, que sequer escolhiam. O grande momento humano da não-coisa, da geração de 60, era quando o indivíduo podia escolher. Camus disse que a liberdade é a possibilidade de dizer não. Caetano disse que é a possibilidade de dizer sim. Então, é a liberdade como aquele ato desesperado, quando o indivíduo transcende a circunstância e consegue dizer sim, eu quero isto, não, eu não quero isto. É uma visão meio desesperada, meio aquela frase de Brecht: "Triste do país que precisa de heróis". Quando eu digo que a escolha é o que há de mais negativo, quero dizer triste da pessoa que tem de escolher.
Dentro dos determinantes ideológicos e biológicos restava ao homem sonhar com a liberdade, considerá-la inatingível, desnecessária ou condenatória. As vezes a traduzia como paz e amor (os hippies por exemplo); outras vezes achava que experimentando drogas, visitando os "paraisos artificiais" poderia conquistá-la, poderia ser livre. Pensou também que tudo dependia da educação e foi criado um modelo de escola para a formação de "crianças livres", a escola Summerhill de Alexander S. Neill, por exemplo, cuja máxima era "para ser feliz a pessoa precisa ser livre para escolher seus próprios caminhos".
Sempre a liberdade era pensada dentro da moldura de externo e interno, antagonismo característico das explicações deterministas e causalistas. Liberdade era quase um dom individual ou era o que resultava do não autoritarismo, resultava dos sistemas livres.
Liberdade, como tudo, é relacional, é estruturada em contextos que quando ultrapassados supera-se limites.
O homem é um ser no mundo com o outro; não existe um ser sozinho, um estar sozinho, liberdade não é estar sozinho. Neste sentido, entendo liberdade como a possibilidade de relacionamento.
Exercer possibilidades é exercer liberdade, é ser livre.
Quando o relacionamento, seja com as pessoas, com os sistemas ou as situações é feito através da satisfação de necessidades, de desejos, de objetivos mantemos regras e situações. Ficamos submetidos ao que nos satisfaz, ao que nos alimenta, nos mantém e apoia.
O desenvolvimento das possibilidades humanas também pode nos sistematizar, nos posicionar e consequentemente nos aprisionar; acontece que as possibilidades humanas estão estabelecidas no nível existencial * - ou seja, transcendência de necessidades - e trazem em si, contradições, condições de ruptura, de antagonismo. Se quisermos ser livres o primeiro passo é conhecermos nossos vínculos, nossos apegos e compromissos. A identificação de necessidades, medos e carências é a identificação dos compromissos, é conhecer a própria vontade circunstancializada em forma de desejos que não permitem estruturar disponibilidade, liberdade. A vontade circunstancializada é a vontade neutralizada, é a vontade transformada em reação. Ao reagir respondemos à programação do sistema, dos outros, dos nossos desejos - não há liberdade.
O ser não comprometido é imprevisível (por isso na atualidade do politicamente correto é comum se pensar que só os loucos são livres, ou pior, que a liberdade é loucura, destempero).
A liberdade traz abertura, quebra prisões, muda paradigmas. É a redenção, é o existir com o outro no mundo sem violências. O mundo, o outro, não são percebidos como antagônicos, desde que não existem conveniências e interesses em jogo.
Os relacionamentos afetivos quando se transformam em acertos, compromissos e vantagens mútuas, deixam os indivíduos alijados da dinâmica do ser com o outro. É difícil qualquer mudança; quando surge alguma situação que poderia libertar da prisão, isto amedronta, imobiliza. Começam as avaliações. Este pragmatismo obriga a escolhas, por definição, impossíveis, desde que estão comprometidas com as circunstâncias. Não há como escolher comer ou não comer, dormir ou não dormir, por exemplo, quando já se está dominado pelas necessidades que precisam ser satisfeitas. Quebrar as correntes das necessidades aplacadas e satisfeitas é libertador, humaniza. Perceber seus vínculos aprisionadores e transformá-los, humaniza.
A liberdade é sempre um ato transcendente. Somente indo além da condição de sobrevivência e compromisso podemos realizá-la. Ela é sempre o diferente do esperado. Liberdade é o novo que dinamiza, que transforma.
As necessidades precisam ser satisfeitas, precisam ser neutralizadas. A propagação de regras para satisfazê-las cria os mercados, os receptores e distribuidores do que se pode escolher.
Liberdade é a transcendência das contingências, das situações escolhidas para ajustar, para acomodar, das situações ditadas pelas conveniências, pelo bem-estar. Situações que eram ótimas, boas e necessárias antes, quando já não significam, existem apenas como imobilizantes.
Exercer liberdade é transformar. Manter escolhas é manter-se adaptado. Precisamos nos adaptar para sobreviver, mas somente isso não é suficiente, pois o homem é tanto igual quanto direrente de um robô programado.
A entrega total, o êxtase religioso são libertadores. A liberdade não cria ganhos, não incentiva pragmatismo. Ela se esgota em si mesma.
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* Conceituações sobre nível existencial e nível de sobrevivência no meu livro: Terra e Ouro são Iguais.
- Terra e Ouro são Iguais, Vera Felicidade A. Campos
- Os Paraisos Artificiais - Baudelaire
verafelicidade@gmail.com
Vera ,
ResponderExcluirEstou sem palavras...bateu forte!!
Perfeito!
Beijos
Ana
Poder escolher hoje para mim é a ressuscitação da mulher que havia morrido em mim.
ResponderExcluirQue bom Silvia.
ExcluirAbraço,
Vera
Eu sou feliz. Não tenho que escolher.
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