Compromisso

"Os impasses existenciais decorrentes de perceber o mundo, o outro como figura e colocar-se como fundo determinante desta percepção, este autorreferenciamento compromete a existência humana. Setoriza e maquiniza o ser humano, levando-o à corrida desenfreada da manutenção, do querer ser alguma coisa válida, aceita, reconhecida, considerada socialmente. Esta busca-luta, esta alienação, compromete. Surgem os padrões, normas e modelos de comportamento: as metas. Empenhado nesta conquista o homem desumaniza-se, passa a ser reconhecido pelo que o representa, por seus símbolos: carro, roupa, status, virórias, fracassos, sucessos, insucessos. O comprometimento com os rótulos cria a autofagia ou despersonalização, o vazio." *

São vários os problemas que surgem da despersonalização, da alienação e um deles é a manutenção, o compromisso. Estar comprometido é índice de alienação, de divisão, fragmentação.

Comprometer-se é estabelecer território, marcar presença e fazer acertos. Ao colonizar e manobrar estabelecemos parâmetros, consequentemente limites.

Limitados pelo compromisso, somos livres apenas em função dos mesmos. A liberdade conseguida é sempre manipulada, decorre de acertos e estratégias. Não é liberdade, é medo, angustia, ansiedade. Kafka, em "O Acorrentado", escreve: "Livre e confiante cidadão da Terra, eis que está preso a uma corrente longa o bastante para lhe proporcionar liberdade sobre todo o espaço terrestre; conquanto longa apenas de maneira a que não o solicite coisa alguma fora dos limites da Terra. É ao mesmo tempo livre e confiante cidadão do Céu, e eis que está preso a igual corrente celeste. Quando pende muito para a Terra, estrangula-o a coleira celeste; quando pende muito para o Céu, estrangula-o a coleira terrestre… Tem todavia todos os recursos, e sente isso; sim, mas obstina-se em negar que tudo se deva a um erro inicial na fixação dos grilhões." **

Este comentário kafkaniano é excelente para mostrar como a divisão, a necessidade de estabelecer separação, as metas e os medos, as crenças (ideologias) e vontades geram compromissos, e dividem. Divididos, os indivíduos correm de um lado para outro a fim de manter seus compromissos. É uma vida de manutenção, contabilizando resultados, funcionamentos, etapas para atingir metas.

Assim a vivência é de angustia e a ansiedade - causada pela divisão resultante da falta de liberdade - é mantida pela negação dos questionamentos ao que compromete.


* "Mudança e Psicoterapia Gestaltista", Vera Felicidade A. Campos, pag. 43, Zahar Editores, 1978

** "Parábolas e Fragmentos", Franz Kafka, pag. 25, Philobiblion - Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1956



















 





"Melancolia I", de Albrecht Dürer, 1514
"Uivo", de Allen Ginsberg


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Bom dia Vera. Antes de tudo, feliz natal, tudo de bom em 2012 e muito obrigada pela criação deste blog este ano que finda, por compartilhar suas idéias, sua sabedoria. Foi uma maravilhosa leitura nos últimos meses.

    Como de costume, um belo artigo. Tão esclarecedoras tanto sua citação quanto a de Kafka! Pensar em posicionamentos filosóficos, visões de vida, religiões e até costumes e hábitos como "grilhões" ou como "busca-luta" por imagens sociais valorizadas é extremamente fértil e uma revolução na cabeça. Entendi que as coisas são assim se a atitude for autorreferenciada, como você diz, se meta e desejo ocupam o lugar da disponibilidade. É isto mesmo?

    É mais fácil enxergar o comprometimento devastador nas questões de imagem social ligada a status, relacionamentos insinceros, dissimulações, alpinismos sociais de toda sorte... mas é difícil ter lucidez quanto ao comprometimento que temos com as ditas "filosofias de vida", sejam posicionamentos políticos, posições espiritualistas ou ateismo.

    Sinto sempre que você toca no "coração" do que nos define; pelo menos quanto a mim, seus artigos são como uma flecha que atinge o alvo.

    Ah! Lindo o quadro Melancolia I, você além de tudo, tem também uma imaginação de artista.

    Abraço

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  2. Que bom Ana, obrigada.

    A condição humana, o humano é balizado por necessidades, possibilidades. Metas e desejos são expressões do que se considera necessário; é o reino do limite, da necessidade, encobre a disponibilidade do exercer possibilidades. O quadro Melancolia I (feito em 1514!) e o livro "Uivo" do beatnik Ginsberg exemplificam esta questão humana, são contextos auxiliares para compreensão do compromisso.

    Feliz Natal e 2012 auspicioso.

    Abraço

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  3. Oi, Vera.
    Seus textos são cada vez mais uma antítese à esse mar de compromissos, divisões e avaliações.
    A citação de Kafka é incrível, na mosca, realmente a "flecha que atinge o alvo", como disse Ana.
    Percebi que os compromissos, acertos e manipulações são tão fortes que me sinto às vezes como que dependurada, suspensa por pontos de apoio. Tenho todos os recursos como diz Kafka, menos o mais importante.
    Obrigada por mais essa.
    Bjs,
    Ioná

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  4. Obrigada Ioná. Seus comentários são incentivadores.

    Beijos

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  5. Vera,
    belo texto, tem tudo a ver comigo!

    Quando lembro da quantidade de compromissos que tinha antes dos seus questionamentos, chego a me assustar, percebo a total monotonia da minha vida sempre em função deles, das metas e do medo de não conseguir ou de conseguir e ter de manter. Um sofrimento enorme, viver nesse círculo deixa qualquer um doente, se bem que, viver assim já é sintoma do estar doente.

    Hoje ainda são muitos compromissos, eu sei, mas já sinto a flexibilidade e o alargamento das possibilidades que abrir mão de alguns deles permitiu. Percebo também como a mudança depende de mim, do meu querer não estar mais comprometida, da vontade de ser livre ser maior que os possíveis benefícios que os tais compromissos podem trazer. Pensando agora, esses benefícios nem são de verdade, pois o preço é tão alto que acabo fazendo um desserviço a mim mesma. Mas é que a despersonalização é tanta que qualquer migalha parece ser valiosa. É a fome da qual você sempre fala. Eu realmente tenho que mudar, que dizer não ao compromisso, à meta, esses grilhões, essas miudezas. Preciso, frente ao abismo, me jogar, não me omitir e nem pensar na queda, mas sim na total impossibilidade de manter o que hoje está estabelecido.

    Obrigada, Vera. Beijos e bom Natal!

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  6. Natasha, seu comentário é muito esclarecedor sobre situações que alienam e aprisionam.

    Feliz Natal para você também e 2012 com muitos insights.

    Beijos

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  7. Vera dizer que o texto é belo é "chover no molhado". Então, que 2012 se apresente doce como fruta madura, sereno como o entardecer da minha terra e desafiador como Viver. Amamos você

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  8. Muito bom receber aragens cálidas desta maravilhosa terra. Obrigada Queen, 2012 auspicioso para você. Abraços

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