Dignidade é unidade

Os problemas psicológicos do ser humano resultam da divisão gerada pelos processos de não aceitação.

Obrigado a se dividir, a se parcializar em função de resultados satisfatórios, o homem se desestrutura. Desde cedo, ainda criança, acontecem os processos de divisão diante de antíteses e contradições; elas podem ser enfrentadas, podem ser negociadas ou desconsideradas. Não sendo enfrentadas, surge a divisão, a desintegração - como expressa o ditado "uma vela a deus outra ao diabo". Contemporizações, acertos e pacificações são constantes. No decorrer desses processos, impõe-se a negociação, o despistar, o aparentar. A dignidade não existe. Sem unidade, divididos, somando e calculando negociações, tudo é feito em função de resultado e de conseguir satisfação; a atitude é de aparentar, enganar para controlar, para conseguir.

A unificação da divisão é o objetivo da psicoterapia, é a única maneira de resgatar a humanidade do sobrevivente alienado e coisificado pela meta da realização dos desejos. Na neurose o drama é imenso: cada desejo é realizado às custas da negociação, da "armação" (planejamento estratégico) da esperteza. Para realizar o que não é aceito pelos pais, pela sociedade, o indivíduo traveste-se para aparentar ser o que não é, ter o que não tem etc. Andaimes, armadilhas, pontes que funcionem são construídas. A moldura institucional e a legitimação são buscadas e valorizadas como vitais. É preciso cobrir, esconder o que não é aceito, é preciso despistar. Este processo dicotomiza, com o tempo pulveriza e transforma o indivíduo em arauto de verdades que para ele são mentiras.

A unidade, a unificação das divisões, o questionamento das mesmas, dignifica, faz com que se pise com os próprios pés e que se ande por conta própria - é autonomia.

















"Rimbaud na África" - Charles Nicholl
"Vida sem fim" - Lawrence Ferlinghetti


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Contundente e certeiro, Vera. As pessoas mais surpreendentes descortinam suas aberrações principalmente na intimidade. Já estamos, infelizmente, acostumados com escândalos políticos e empresariais, onde pequenos e grandes furtos, ganância, imagens, duas-caras e todo tipo de desumanidades são eufemisticamente vistas como exentricidades ou como "fazendo parte". Vemos também essas atitudes cada vez mais generalizadas e em toda parte. Escrever sobre dignidade é para mim, um ato de heroismo seu. Pensar os problemas psicológicos sob esta ótica é muitíssimo fértil: é como uma flecha que traspassa nós mesmos, indivíduos próximos e figuras distantes numa triste unificação. Obrigada por acenar com uma luz no fundo do túnel.

    Abraço

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    1. Obrigada Ana, o que você escreveu me lembrou Brecht: "triste o país que precisa de heróis".

      Estranhar, questionar é uma maneira de não se fragmentar nos apoios - adesões implícitas à desordem reinante - principalmente na comunidade psicológica, onde a imprecisão teórica e a ajuda são o lema.

      Abraço

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  3. Grande texto, Vera, assim como o anterior.
    Sem unidade não há coerência, não há dignidade e sem uma postura honesta, dedicada aos problemas, não há integração, nada muda.
    Bjs.

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  4. Caramba, Vera. Gosto de cada texto que leio aqui toda semana, mas alguns são especialíssimos, como esse.

    Ao ler sua descrição sobre o processo de não enfrentar, negociar, dividindo-se, revivi o desconforto que isso gera. Pelo menos para mim, o desconforto causado por esse processo é sentido imediatamente. Não acho que seja uma coisa a ser sentida apenas no longo prazo, mas na hora mesmo da evitação. É como se essa divisão de fato partisse algo dentro da gente e embrulhasse o estômago. Penso que pena mesmo é quando a gente passa por cima desse desconforto, deixando a coisa para ser mais dificilmente enfrentada amanhã.

    Obrigada pelo texto!
    Beijos.

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  5. Uma releitura de sua citação de Brecht: Triste a pessoa que (acha que) precisa SER herói. Por que não também aquela que precisa de heróis... Reflexão para a semana todinha... Beijos.

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    1. Oi Clarissa, obrigada pelos comentários e sua releitura de Brecht é muito boa, valeu!

      Beijos

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  6. Dra. Vera, lendo seu artigo me chamou a atenção a descrição de como os processos de divisão já começam na infância e fiquei pensando na minha própria infância, na dos meus filhos... bem, queria lhe perguntar: existe uma dimensão muito real que é a do medo, a criança diante dos pais, dos mais velhos da família, dos professores etc vejo que elas vão se adaptando a certas restrições, em geral obedecem, demonstram inteligência, surpreendem. Repressões parecem inevitáveis. Como deixar claro para um filho que o aceitamos e ao mesmo tempo socializá-lo, educá-lo sem gerar nele, divisões? Sempre pensei em educação dos meus filhos em termos dos valores que transmito a eles, mas vejo em vários de seus artigos que a Senhora fala de algo mais fundamental que é "aceitação" e fiquei preocupado se meus filhos se sentem aceitos ou não, no sentido que a Senhora fala.
    Desde já agradeço,
    Carlos Moreira

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    1. Prezado Carlos,
      Boa noite, obrigada por seu comentário.
      Você como pai é que pode saber se aceita seus filhos enquanto eles próprios ou em função de seus desejos, demandas e expectativas do que você acha melhor para eles. Aceitar é uma atitude estruturada no contexto do presente e em disponibilidades.

      Abraço

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  7. Vera,
    A leitura do texto é impactante.
    No geral, acho que a falta de dignidade é questâo de saúde pública!.
    Já no particular; foco nos questionamentos e atitudes honestas.Não nascenos desestruturados, fragnentados e desonestos,Certo?!
    bjos
    Ana Cristina

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    1. Oi Ana Cristina, você tem razão, a falta de dignidade é tão comum, é tal incidência que realmente deveria ser uma questão de saúde pública! Acontece que o público e o privado estão no mesmo barco, uns refletem os outros. Nascemos apenas com necessidades e possibilidades de relacionamentos, o que fazemos com isso é a nossa história. Obrigada pelo seu comentário.

      Beijos

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  8. Vera, desculpe

    questão... nascemos.... fragmentados....

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  9. A leitura desse texto me remeteu a uma situação da minha infância quando fui repreendido e humilhado na frente de algumas pessoas, simplesmente por ter falado a verdade. Comecei a aprender a mentir, por que dizer a verdade podia, em alguns casos, significar humilhação ou mesmo levar porrada. Ter clareza de tudo isso tomou tempo e a possibilidade de manter acesa a fé interior de que se pode ser íntegro, diferente do muro de hipocrisia que insiste em nos rodear. Vera, beijo!

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  10. Oi Augusto,
    O problema é que você queria ou precisava ser aceito; neste contexto, dentro dessa necessidade, você começou a achar que dizer a verdade não era bom, dava prejuizo, iniciando assim negociações e mentiras. O processo de aceitação leva tempo e depende de questionamentos. Obrigada pelo seu depoimento bastante contextualizado no tema abordado no artigo.
    Beijo

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