Coragem

Três principais acepções caracterizam o que se pensa ser coragem: heroismo, salto no escuro e destemor. Um denominador comum das mesmas é a rapidez da ação, a não avaliação, a espontaneidade, enfim, o ato presente cuja implicação pode trazer alívio, mudança, liberdade, ato que se caracteriza pelo perigo, pelo risco.

O corajoso é o herói, o destemido, o desapegado até da própria vida. Em contextos massificados, coordenados para vantagens e utilidades, é cada vez mais difícil encontrarmos corajosos.

Para ter coragem basta ser honesto, nada difícil, nem impossível. Mesmo nas estruturas neuróticas, mesmo nos processos de não aceitação, a honestidade, a coragem surgem quando se aceita que não se aceita e se age conforme isto. É honestidade, por exemplo, não continuar nas fileiras de um grupo, uma agremiação, uma sociedade religiosa, quando se percebe motivações e ajustes de conveniência. Romper acertos, quebrar compromissos, mudar paradigmas, renunciar às vantagens do lucro que sustenta, tanto quanto romper relacionamentos que se transformaram em pilares de sustentação, posições estabilizadoras de bem-estar e inércia, pode ser exemplo de atitude honesta, corajosa.

Agir de acordo com o que se percebe e não de acordo com o que se precisa ou deve é honestidade, gera coragem, rompe compromissos asfixiantes, oxigenando e dinamizando. A coragem tira da imobilidade, dinamiza. Neste contexto, as acepções da coragem são honestidade, renúncia e liberdade.

Indivíduos comprometidos com o sistema não podem ser honestos, não podem ser livres e passam a traduzir renúncia como sacrifício; são seres queixosos, seres falhados, como a legião de mães e pais que tudo fizeram pela felicidade dos filhos e se sentem sacrificados, não reconhecidos; são os sustentadores, a base que reclama, sempre amedrontados.

Aceitar os próprios problemas, aceitar que não se aceita é uma atitude de honestidade, de coragem, diferente de medo, de acomodação.



 "Os Dados Estão Lançados", de Jean-Paul Sartre 


Comentários

  1. Mais uma vez, na mosca, Vera!
    Estava mesmo precisando deste antídoto: coragem, honestidade, aceitar a não aceitação.
    Acho perfeito entender coragem como honestidade, pois limpa esse conceito dos valores culturais e das necessidades de aceitação. Quem não é honesto com seus próprios problemas e limites não pode ser com os outros, não é corajoso.
    Obrigada!
    Bjs.

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    1. Ioná, colocas bem a questão. Honestidade, coragem são implicaçãoes da aceitação, da aceitação da não aceitação. Esconder os próprios problemas, negar o que é considerado diferente vexatório é desonesto, é o que cria os "zumbis", os que se escondem nas imagens consideradas de bom efeito para assim vencer, enganar, conseguir. Neste contexto de selvas e serpentes, caçar virtudes, separar o joio do trigo é destemor, precisa coragem.

      Obrigada, beijos

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  2. Olá Vera, que bom ler este artigo após o anterior "Impaciência é Indignação", como se complementam bem, é preciso coragem para indignar-se, desacomodar-se, assim como para assumir as próprias fraquezas e crises pessoais, sem imagens, "agir de acordo com o que se percebe" como você bem diz. 

    É maravilhoso como você mostra as várias facetas de uma mesma situação, atos que muitos entendem como covardia (desistências ou renúncias, em alguns casos),  podem até serem entendidos como crises corajosamente assumidas, gerando mudanças genuinas, sinceras.

    Abraço

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    1. Ana, como sempre seus comentários ampliam percepções. 

      Obrigada, abraço

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  3. Grato por esse texto Vera,

    me auxiliou a aprofundar o questionamento que dirigi ao amigo Augusto, no texto anterior.
    E percebi semelhanças com os ensinamentos que comecei estudar na Gita.
    Esse texto também me remeteu a uma cena do filme "Mahabharata", de Peter Brok, que ví dias atrás.
    É a cena quando Krisna questiona Bhisma (que sempre foi procupado em manter a ordem) no seguinte sentido: "mas e se para protegermos o Dharma temos que destruir a ordem social constituída?". E daí ele responde que essa é uma pergunta para a qual nunca encontrara resposta e que o atormenta. Então Krisna diz que é por esse motivo que ele não pode intervir no "jogo de dados" que dará um grande impulso à guerra narrada na Gita, a qual simboliza essa destruição da ordem constituída para que se proteja o Dharma, a verdade.

    legal...
    abraço.

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    1. Obrigada Diego,  pelo comentário. A raiz, a essência do Bhagavadgita e da filosofia veiculada através do Mahabharata é de ordem transcendental onde "terra e ouro são iguais". Neste nível, verdade, coragem, ordem, matéria estão mais próximos de maya, ilusão. Só quando isto é percebido é que se realiza o rompimento das cadeias que imoedem viveka - conhecimento discriminativo. Esta é a fala de Krishna e a grande lição que os sábios védicos deixaram. 

      Abraço

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