O cérebro é o outro - Neurociência e elementarismo

As relações entre físico e psíquico, entre corpo e alma, orgânico e psicológico são padrões conceituais responsáveis por reducionismos dualistas desde Descartes - marco fundamental das investigações psicológicas ditas subjetivas. Atualmente, a Neurociência sobressai-se neste reducionismo dualista ao repaginar William James, que se interessava pelo estudo dos limiares perceptivos, tendo estudado no laboratório de Wundt em 1879. William James foi o criador da teoria das emoções com base fisiológica. Ele dizia: "nos sentimos tristes porque choramos, sentimos raiva por tremermos e não o contrário", enfim, postulava que era a modificação orgânica, neurológica que criava a emoção. Assim ele validava neurologicamente o que ele chamava de consciência motora*.

O princípio isomórfico (isomorfismo) estabelecido por Koehler e Wertheimer em 1912 - psicólogos fundadores da Psicologia da Gestalt - diz que a toda forma neurológica/orgânica corresponde uma forma psicológica; por exemplo a percepção visual decorre de haver um aparelho visual (olho e sua estrutura orgânica/neurofisiológica) relacionado com um contexto cujos objetos e iluminação são focados, percebidos.

Acredito que toda a psicologia, filosofia e ciência podem partir do conceito de relação: como ela é estruturada, qual sujeito e objeto são seus fundantes e possibilitam seu significado, eficácia e operação, explicando os processos relacionais. Perceber é estar em relação com. Este relacionar-se é o que permite unificar as dicotomias entre orgânico e psicológico, entre organismo e meio. A relação estabelecida pelo voltar-se para as coisas é a intencionalidade, a consciência husserliana.

As relações cognitivas - conhecimento e significado (categorizações), percepção e percepção da percepção são estruturadas perceptivamente. Os gestaltistas alemães descobriram, experimentalmente, leis que regem o processo perceptivo cuja base é a Lei de Figura/Fundo. Toda percepção se dá sempre em termos de Figura/Fundo. O percebido é a Figura, o Fundo nunca é percebido, existe uma reversibilidade, uma modificação entre o que é Figura e o que é Fundo. A Lei de Figura/Fundo explica o que é percebido e o que não é sem necessidade da construção teórica ou hipótese do inconsciente, seja no sentido freudiano, seja o 'lui' lacaniano, seja o subliminar da neurociência.

Quando a Neurociência fala no subliminar como o equivalente ao inconsciente, atualiza Freud mantendo todo seu reducionismo. O cérebro evolutivo tem a última palavra como diz Leonard Mlodinow em seu livro "Subliminar": "Quando tentamos dar uma explicação para nossos sentimentos e comportamentos, o cérebro realiza uma ação que sem dúvida o surpreenderia: faz uma busca no seu banco de dados mental de normas culturais e escolhe algo plausível. Por exemplo, nesse caso o cérebro pode ter procurado no registro: 'por que alguém gosta de festas' e escolhido 'as pessoas' como a hipótese mais provável"… ou ainda, conforme citação do mesmo autor relatando o que ouviu de outro conhecido neurologista: "eu penso sobre meus sentimentos, minhas motivações. Falo com meu terapeuta sobre eles, e finalmente saio com uma história que parece fazer sentido, que me satisfaz. Eu preciso de uma história para acreditar. Mas, será verdade? Provavelmente não. A verdade real está em estruturas como meu tálamo, hipotálamo e amígdala, e a isso eu não tenho acesso consciente, não importa o quanto sonde meu interior". **

Explicar o comportamento humano, as ações sociais e psicológicas por este reducionismo neurológico, serve apenas para criar modelos e paradigmas úteis a políticas e ações mercadológicas. Pode ser que em um planeta povoado por 7 bilhões de pessoas, próximo a 8 bilhões, seja necessário e útil este arsenal, estas ferramentas para, por exemplo, dar novo significado à canibalização, explicar que ela é uma forma de suprir proteinas ou ainda dizer que proibir a reprodução humana tem como objetivo salvar o planeta; que viver é funcionar produtivamente e este é o futuro deste enorme contingente de pessoas medicalizadas e homogeneizadas. Os neurocientistas postulam que a evolução fundamentalmente não projetou o cérebro humano para entender a si mesmo, mas sim para nos ajudar a sobreviver.

Diante de tudo isto, deste caos, penso que precisamos de perguntas que globalizem contradições, unifiquem divisões, por isso devemos fugir das respostas esclarecedoras e facilitadoras que criam o dividido para poder governar, poder controlar seus resíduos e fragmentações.

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* Esta teoria da consciência motora, permitiu criar instrumentos para estabelecer diferenças individuais, inclusive diferenças de personalidade, como o PMK (Psicodiagnóstico Miocinético) criado por Mira y Lopez e ainda muito usado na segunda metade do século passado.

** "Subliminar - como o inconsciente influencia nossas vidas" de Leonard Mlodinow, pags 227 e 212, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2013



- "Subliminar - como o inconsciente influencia nossas vidas" de Leonard Mlodinow
- "E o cérebro criou o homem" de António R. Damásio
- "A realidade da ilusão, a ilusão da realidade" de Vera Felicidade de Almeida Campos


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Vera,
    Gostei muito e não paro de pensar a sorte que tenho de ser sua cliente. Muito obrigada.
    bjos
    Ana Cristina

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  2. Tem mais ciência nesse artigo que em um monte de livros que anda por aí. A dita ciência muitas vezes é só crença. Me parece que Leonard Mlodinow rouba a capacidade do se humano se conhecer, lança uma insegurança, uma dúvida no sujeito sobre o que este percebe.

    Ouvi esses dias Dave Brubeck falar (morreu em 2012) em uma entrevista de gravada em DVD sobre uma pessoa ser perceptiva a sons, como um músico do calibre dele percebia a música e os sons do mundo, como compôs a partir de suas percepções Blue Rondo a la Turk, Stange Meadow Lark, Take Five e outras. Se a gente fosse falar pro Dave que tudo é uma coisa que a gente acredita e que não podemos conhecer a realidade por que não conhecemos diretamente o hipotálamo, a amigdala e as convoluções do córtex, acho que ele teria um sorriso leve, dizendo, realmente, esses neurocientistas não conhecem mesmo, pode ser que nuca ouviram música ou se ouviram não escutaram.

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    Respostas
    1. Oi Augusto,

      Muito esclarecedor e pertinente seu comentário, amplia o nível de conhecimento e consequentemente de questionamento.

      Obrigada. Abraço, Vera

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  3. O artigo O cérebro é o outro - Neurociência e elementarismo.
    Pode responder muitas perguntas que ficam martelando o cotidiano de nossas vidas em relação nossa origem\existência e ir ao encontro do nosso verdadeiro ser.......

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