Prazer e tédio

O pragmatismo é sempre alienador, transforma o humano em um instrumento qualificado para o exercício de funções. Este reducionismo, inicialmente eficiente e prazeroso, torna-se tedioso. A mesmice esgota necessidades e reaviva o limite e consequentemente as metas de ultrapassá-lo.

A trilha do processo, quando muito nítida, quebra a reversibilidade perceptiva*. Tudo se torna rígido, claro e limpo e não satisfaz, mas, é a partir desta rigidez que tudo é percebido. Congelar o processo, estabelece o caminho, entretanto, saber que sempre que se deseja se realizará o prazer, gera um mundo dilacerado, estático. Consideremos o que sente um drogado: depois de algum prazer conseguido, o prazer passa a ser significado pelo aplacamento do incômodo do não prazer. A imobilidade pontualiza, fragmenta.

A busca do prazer sexual muito cedo, por exemplo, na infância e adolescência, quando outros referenciais estão surgindo que não os de satisfação sexual, é responsável por tédio e esvaziamento. Adolescentes, que desde os 14, 15 anos se dedicam a satisfazer suas demandas sexuais, entediam-se seja pela continuação do exercício da sexualidade, seja por percebê-la como mecânica, repetitiva.

A continuidade da vivência prazerosa, ao fragmentar-se pela densidade rígida do previsivel, cria depressão. Manter o que dá prazer, o que se conseguiu, o que aplaca, é monótono - não motiva. Surgem rituais e derivativos para ver se alguma mudança ou colorido é conseguido. Perde-se de vista o que dá prazer ao dedicar-se aos caminhos que propiciam o prazer. Este disfarce, instala esforço, trabalho, desgaste, mais tarde recuperado e causador de prazer. O prazer ao virar consequência quebra a relação direta e assim se preenche vazios, estruturando, descontinuidade, tédio e monotonia.

Motivação é curiosidade, sem dinâmica nada é novo, tudo que acontece é o que se espera que aconteça, a vida fica tediosa, previsivel, monótona, desprazerosa.

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* Reversibilidade perceptiva, lei da percepção: o que se percebe é a Figura, estruturada em um Fundo não percebido, quando o Fundo é percebido ele se torna Figura; são reversíveis, a Figura se transforma em Fundo e vice-versa.















 

"Confissões" de Sto. Agostinho
"Guerras do Prazer" de Peter Gay


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Vera,

    Esse texto mexeu muito comigo hoje. Pensei que a beleza, o prazer e o milagre só existem no encontro. Querer ter o controle, fazer de tudo para conseguir, matam a possibilidade do encontro. São como flores, tão bonitas, mas se você cortá-las para colocar em jarros, elas morrem; ou como o assum preto... Essa vontade louca que assola o mundo de querer possuir, de querer controlar, de ter todas as chaves... isso destrói tudo. Mas acho que para ter essa disponibilidade de aceitar quando o prazer existe e aceitar quando ele acaba só mesmo aceitando a si mesmo...

    Conheço pessoas que pelo prazer fazem de tudo. Algumas estão tão entediadas que, como você disse, “o prazer passa a ser significado pelo aplacamento do incômodo do não prazer”. Outras acham que o sentido da vida está em ter prazer, então toleram iniquidades, são venais para ter em troca os prazeres, desde comer um acarajé no fim do dia a transar com alguém por quem sente atração, sem um pingo de remorso, sentimento nenhum em relação a toda a desonestidade cometida e tolerada.

    Eu vivi tempo demais assim, agora já não dá mais.

    Obrigada. Beijos.

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    Respostas
    1. Oi Natasha,

      Perfeita a globalização que você fez: conseguiu unificar contradições e identificar marcos alienadores. Prazer como deslocamento ou segurança é despersonalizador.

      Beijos,
      Vera

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