Confusão - Perversão

Quebrar a ordem, a congruência e as diferenças existentes é típico das perversões. Confusão resulta de ambiguidade. Não perceber o que está diante em seu próprio contexto estruturante leva às distorções perceptivas, estruturadas principalmente no autorreferenciamento. Frequentemente estas distorções criam ambiguidades, confusões na distinção de dados. As religiões, as psicoterapias, a psiquiatria, ao classificar, procuram resolver estas ambiguidades e estabelecer códigos e normas que permitam diferenciar comportamentos, entretanto, as perversões sempre ultrapassam estes referenciais ao remeter para o indivíduo que transgride estas normas. Que monstruosidade é esta? É uma simples anomalia resultante de condições adversas? Como pode um ser humano seviciar, utilizar para desejos eróticos, o próprio filho?

Existem vários mecanismos, socialmente validados, para decidir o que pode ser considerado perversão.

Interessante o que nos conta Mary Douglas, citando a obra de Evans-Pritchard: “por exemplo, quando um nascimento monstruoso ocorre, as linhas que definem os humanos dos animais podem ser ameaçadas. Se um nascimento monstruoso puder ser rotulado como evento especial, então as categorias poderão ser restauradas. Assim, os Nueres tratam nascimentos monstruosos como bebês hipopótamos, nascidos humanos acidentalmente, e, com este rótulo, a ação apropriada fica clara. Eles gentilmente, os colocam no rio que é o lugar ao qual pertencem.”

Virar “trash” de sistemas e demandas individuais, desumaniza. Ao perder identidade, pode-se ser “o hipopótamo que volta ao seu lugar” ou como diz Mary Douglas “enquanto a identidade está ausente, o lixo não é perigoso. Também não cria percepções ambíguas, pois pertence, claramente, ao lugar definido, um monte de lixo de uma espécie ou outra… Onde não há diferenciação, não há contaminação”.  As vítimas dos campos de extermínio, as ossadas das execuções de Pol Pot, e os milhões de outras vítimas de pervertidos são estatísticas, números estabelecidos dos males, das fases sombrias dos processos civilizatórios.

Transformar o outro - não importando quem e como - em objeto de satisfação sexual ou objeto de satisfação alimentar, é perversão: necrofilia, incesto, pedofilia e canibalismo (menos frequente na atualidade); além destas classificações tradicionais, a perversão se alastra invadindo nosso cotidiano. Quando o outro é transformado em objeto, tudo é possível: utilizações espúrias, arbitrárias e destruição o converte em verme, “saco de pancadas”, receptáculo de prazer, assim como em bode expiatório de políticas falhas. 

É preciso não acumular “o outro lado”, não estabelecer ambiguidade geradora de confusão, como mais uma possibilidade humana; é necessário perceber tudo isto como acúmulo de autorreferenciamento, desumanização transformada em ferramenta de destruição do semelhante.

Submeter o outro aos próprios desejos é a perversão característica da ganância, da impotência, do autorreferenciamento, em qualquer âmbito que aconteça: sexual, uso de relacionamentos, realização econômico-social; é a mais-valia, a realização de desejos e prazeres, quebrando referenciais e limites, subordinando e obrigando.


















- “Psychopathia Sexualis” de Richard Von Krafft-Ebing
- “Pureza e perigo” de Mary Douglas


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