Permanência de contradições desencadeiam acontecimentos
Em realidade, tudo que acontece, esperado ou inesperado, depende da permanência de contradições. Permanência de contradições é o que permite manter, em um mesmo contexto, todas as variáveis estruturantes do que é focalizado como processo responsável pelos acontecimentos (ou não acontecimentos). Expectativas levam a previsões, que, baseadas em causalidade, distorcem a percepção do presente; por exemplo, morrer será um acontecimento na vida de qualquer pessoa, mas, se perguntarmos quando uma pessoa vai morrer e como, a resposta vai depender da globalização das situações vivenciadas pela pessoa, pela configuração da permanência de contradições que estabelecem vida ou morte e não de conjecturas mágicas ou análises causalistas.
Possibilidade, necessidade, contingência e acaso se constituem em explicações do acontecido, do evidente, entretanto, a realização e expectativa de certos acontecimentos é falsamente explicada pelas possibilidades causais dos mesmos; causalidade e evidência contrastam e se afirmam, “as coisas só são previsíveis quando já aconteceram”, dizia Machado de Assis e “tudo o que pode acontecer, acontece, mas somente pode acontecer o que acontece”, falava Kafka.
Quando as contradições permanecem, o desequilíbrio surge, o movimento continua, os processos acontecem, gerando o novo, mas, a permanência de contradições na configuração dos fenômenos, quando parcialmente mantida, gera deslocamentos, podendo também estabelecer neutralização desta mesma permanência e nada surge diferente do já ocorrido. A mudança é sempre uma modificação, neste sentido, um novo, diferente de repetição ou continuação. Querer saber se alguma coisa vai acontecer ou não, expressa preocupação com a continuidade/descontinuidade. A continuidade das coisas estabelece hábitos que não provocam curiosidade. Querer saber o que vai acontecer ou não vai acontecer, é querer saber se a continuidade vai ser quebrada ou mantida. Para atingir certezas, é necessário globalizar as contradições existentes em um processo, desde que só através da permanência das mesmas é que se consegue obter as direções decisivas. Transversais a estes processos criam posições fragmentadas que englobam expectativas, gerando dúvidas, incertezas e neste contexto só o que acontece permite sua explicação, negando a previsão como dizia Machado de Assis, tanto quanto, é neste momento que se afirma o fatalismo, o “determinismo realista kafkaniano”.
Quanto maior a contradição, maior a possibilidade de certos acontecimentos, maior a possibilidade de mudanças, consequentemente de expectativas, de previsões se realizarem e serem até, às vezes, entendidas como adivinhação ou fatalidade.
Na esfera psicológica a permanência de processos contraditórios gera mudança quando percebidos, mas, também são responsáveis por acomodações e adaptações infinitas ao serem percebidos por angulações deslocadoras que criam imagens distorcidas, fragmentadas e parcializadas dos acontecimentos. Explicações surgem e esbarram em magia, por exemplo. O não perceber implicações relacionais gera pensamento autorreferenciado, supersticioso, estereotipado e é à partir disto que tudo é explicado: “sair com o pé direito para que tudo dê certo” é um exemplo desta minimização relacional. Ultrapassar os limites das variáveis, dos dados e supor forças externas aos mesmos como explicativas das evidências, é criar crenças e explicações sobrenaturais para os fenômenos, para o que ocorre.
Homogeneização, neutralização, gera monotonia, tédio, inércia que em si são desencadeantes de novas contradições, e assim surgem novas configurações, que se mantém desde que situadas em seus próprios estruturantes. Neutralizar também é deslocar contradições que só reaparecem através de fragmentações desequilibradas. A contradição cria variáveis (pontos) onde as coisas acontecem, seja pela mudança, seja pela manutenção devido aos deslocamentos que a impedem. Os eternos “casamentos perfeitos” que de repente acabam em tragédia, exemplificam este processo ou ainda, as ditaduras que desabam como pó, depois de muito tempo.
Na Psicoterapia Gestaltista, a permanência de contradições existe quando se percebe os próprios problemas, quando se percebe que os mesmos não são aderência. Perceber que não se tem o problema, mas que se é o problema, faz mudar a percepção de si, do outro, do mundo e do que o aflige; faz entender que se o problema do outro o atinge, o problema é seu. Esta percepção mantém contradição, impede deslocamento e faz as coisas acontecerem nos contextos onde as mesmas são estruturadas (a problemática), faz com que se busque solução nos contextos das próprias contradições problemáticas e não nos desejos do que poderia solucionar, do que precisa resolver, do que deseja que aconteça.
- “A Realidade da Ilusão, a Ilusão da Realidade” de Vera Felicidade de Almeida Campos
- “Diário Íntimo” de Franz Kafka
verafelicidade@gmail.com
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