O acaso
O acaso pode ser, às vezes, reconfigurador de situações. Tudo que está neutralizado por tensões iguais e constantes é facilmente desequilibrado, modificado.
Ser motivado pelo novo, pelo inesperado é um exemplo de acaso como reconfigurador de situações. Acontecimentos súbitos podem desarticular o anteriormente estabelecido: acidentes, mortes trágicas e imprevistas subvertem o existente ao criar novos contextos. Da mesma maneira, encontros inopinados, paixões arrebatam, descontextualizam, transformam situações estáveis, gerando mudanças dinamizadoras ou estagnadoras.
A superação do existente frequentemente gera conflitos, que se transformam em obstáculos, tanto quanto em dispersores do novo. Motivação e aversão criam soluções e resistências determinantes de novos comportamentos. No desenvolvimento das relações, atinge-se pontos imobilizadores ou transformadores. Deparar-se com casualidades, perceber o novo, impõe mudança de atitude, entretanto, essa reconfiguração pode negar convicções, negar certezas e gerar insegurança, fazendo com que a percepção do que, até então, era familiar, se torne estranha. Desespero, dúvidas, coragem se impõem. Não saber o que fazer diante do novo, do acaso reconfigurador, é um esforço para negar o que ocorre, é a tentativa de deter a impermanência, de manter o que já mudou.
"Ao visualizar a imprevisibilidade somos remetidos ao acaso. Lidar com o acaso como interseção de probabilidades e possibilidades,
espacializa-o, conferindo-lhe assim, condições de previsibilidade,
desde que abrangidas todas as variáveis dependentes, independentes e
intervenientes que o configuram. Pensar no acaso como
um ponto, privando-o de sua malha constituinte, liberta-o de qualquer
previsibilidade; abstraído de seus constituintes, ele se afirma como
Figura (sentido gestásltico da palavra) contextualizada no limite, pois
ao afirmar-se como acaso, deixa de ser continuidade de probabilidades,
de possibilidades. Metafisicamente, o acaso pode ser
compreendido como emergência desvinculada de qualquer realidade
processual. Fenomenologicamente, descritivamente, o acaso é percebido
como facticidade, evidência. Popularmente, o acaso é percebido como
fatalidade em sua acepção ampla de bem ou de mal. Independente de
critérios valorativos, o acaso é o inevitável."*
O acaso geralmente é reconfigurador, entretanto, a nova situação pode ser utilizada como fator de manutenção do que foi negado e quando isso ocorre, incompatibilidades e divisões são frequentes: o antes não combina com o depois; a passagem de situações, o novo sobrevivente ao velho, criam descontinuidade, dúvidas e desadaptações; a motivação é vivenciada enquanto necessidade, conveniência, compromisso, imagens etc. É a parcialização despersonalizadora, é ajustar-se na impotência desumanizadora, geradora de omissões (medos) e impasses.
O acaso é esclarecedor ao trazer reconfiguração, transformação do dado, apontando para possibilidades, que podem ser vivenciadas como limites ou como aberturas, embora sempre modificadoras do estabelecido, antes vivenciado como permanência definidora.
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* em "Relacionamento trajétória do humano", pag. 50, de Vera Felicidade de Almeida Campos
- "A melancolia diante do espelho - Três leituras de Baudelaire" de Jean Starobinski
verafelicidade@gmail.com
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