Dispersão
Perder perspectivas, posicionar-se nas frustrações impede participar com o que ocorre enquanto situação que está ocorrendo. Tudo é percebido através de filtros de avaliação, vitimização e queixas. As tensões aumentam, a não aceitação da não aceitação do que problematiza é cada vez mais enfática e demanda escoamento para que haja um mínimo de dinamização, ou mesmo de locomoção. Deslocamentos aparecem, não se sabe o que se faz. As circunstâncias decidem, e assim, o desespero é o contínuo esfacelamento de possibilidades e questionamentos. Vive-se para suprir necessidades, esquecer dores e exibir, propagandear soluções, tentando através de companhias, de ajudas, conseguir bem-estar.
Sempre que decisões são adiadas por envolverem dificuldades, medos e riscos, os dilemas e contradições se transformam em “caixas-pretas” assoberbadas. O vôo cego é constante, as direções, as motivações são dispersas, contingentes. Neste mundo circunstancializado não há sintonia, pois não existem frequências contínuas. A permanência de demandas se realiza através do acúmulo de necessidades, tanto quanto a diminuição das mesmas é, cada vez mais, fonte do acaso. Quanto maior a dispersão, menor a organização. Pontualizar, fragmentar e setorizar determinam as motivações. Almeja-se suprir a falta, conter o que se extingue, o que desaparece. Lutar para recuperar, não saber como fazê-lo, é típico destas vivências.
Processos de constante dispersão esvaziam as possibilidades relacionais e capacitam para a construção de situações emergenciais, que nada definem embora realizem escoamentos de contradições ao criar apegos, medos, regras e hábitos. O hábito é uma tentiva desesperada de conter a dispersão, é também uma maneira de simular organização, vitalidade e comprometimento com o que ocorre, criando assim, compulsão. A rigidez característica das vivências compulsivas, nada mais é que arrumação da dispersão: o aparentemente flexível é o estilhaço da tensão, dos blocos de impedimentos alimentados pela frustração.
Livrar-se da compulsão é possível quando se recorre às trajetórias dela ensejadora: desconfiança, frustração, posicionamentos não questionados quando circunstancializados, dispersões amenizadoras que mais tarde se transformam em impedimentos: dispersões que impedem conectar, organizar o vivenciado.
Esta impossibilidade de organizar cria impasses e obriga a utilização de alavancas desvitalizadas para que se consiga continuar vivendo, instalando assim, as ordens compulsivas como substitutivos de vida, dinâmica e realidade. Dispersar, perder-se no que acontece, é se candidatar a futuras algemas para se situar, para se encontrar na infinita possibilidade e reversibilidade do estar no mundo.
“Coração tão Branco”, de Javier Marías
verafelicidade@gmail.com
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