Desvios e caminhos - Dons e talentos

Considerar que ao escolher um caminho, uma profissão, se deixa, se abre mão de outras tantas, atordoa. Esta disponibilidade infinita causa sensação de fracasso, de despropósito. Solto, sem amarras, tudo soçobra. Não é por acaso que surgem as predeterminações, os talentos, dons e finalidades familiares e/ou sociais que tudo definem e materializam. Escolher uma profissão, uma forma de viver, um parceiro/acompanhante para a vida, é o predisposto. As dispersões exigem esta viabilidade. Qualquer atitude que fuja do padrão determinado é considerada excêntrica, desviante e ameaça tanto quanto motiva.

Quebrar paradigmas abre novos panoramas, tanto quanto dizima tediosas atmosferas. Desvios se transformam em caminhos, pois sempre levam a novas configurações ao exercer sua função de passagem. Exatamente nesta mediação (passagem) surgem antíteses reveladoras e possibilitadoras de insight. Esta mudança é que valida o estar no mundo. Geralmente se chega a este momento de antítese com a escolha. Mas, neste contexto, escolher é repetir, é avaliar mais do que afirmar, pois sempre decorre de compromisso, de avaliação que permite separar o que se quer, do que não se quer. Escolher, neste sentido, é o arsenal que se dispõe: sempre se escolhe o que se tem aptidão, o que se tem condição, o que se deseja, mesmo que sinonimizados com dons e talentos.

O a priori de se sentir capaz ou incapaz é traduzido como ter aptidão, ter talento, aptidão para X ou Y. Constatar esta familiaridade cria, imediatamente, a ideia de aproveitar, operacionalizar a dádiva recebida, criando assim, duplos de si mesmo, transformados em produtos aceitáveis, vendáveis. Estes duplos submetem o que os originou. O indivíduo talentoso só existe à medida que é aplaudido, reconhecido e comprado (é um produto), consequentemente, negado como ser humano e realizado como lídimo representante dos sistemas que valida e propagandeia. Realizar seus dons e talentos ocorre no contexto de escolhas e compromissos, transforma sua realização e sucessos em máscaras e imagens acobertadoras e negadoras de sua individualidade. Instituições, funções, titulações absorvem o esgotamento do estar no mundo e criam ícones: o Papa, a Mãe de Santo, o pai, a mãe, a professora, o pivete, a garota de programa etc.




“Os 49 Degraus” de Roberto Calasso

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