Escolha
Volta e meia aparecem no Facebook, comentários de leitores, nos quais a questão da escolha está embaralhada (conceitos e implicações). Achei oportuno postar este capítulo de meu livro “Relacionamento, trajetória do humano”, de 1988, pags. 49-51, no qual a conceituação de escolha, no contexto da Psicoterapia Gestaltista, está estabelecida.
Escolha
Escolher, geralmente, é considerado sinônimo de preferir, tanto quanto foi celebrado como resultante de liberdade, de não compromisso, por Satre que, em certo sentido, continua a ideia kierkegaardiana de ausência de critérios na escolha.
A escolha como preferência já resulta de um compromisso com motivações, situações, posições prévias ou antecipadas, chegando, assim, a identificar-se com gosto, com preferência* e, daí, o gostar tornar-se sinônimo de convivência contínua com o escolhido, bem ao sabor de certas ideias vigentes de que familiaridade, convívio, adaptação, hábito, costume, condicionamento fabricam o gostar.
Escolha como liberdade implica em autonomia vivencial, situacionamento presente, espontaneidade, o que incorpora a idéia de “amor à primeira vista”, de encontro.
Começando a trançar os dois conceitos, notamos que um é fundamentado em necessidades - escolha como preferência - enquanto o outro nasce das vivências de possibilidades ou, ainda, contingências e transcendências.
Limites e infinitos, se percebidos, podem trazer maiores subsídios para a compreensão.
Podemos pensar que a escolha como preferência é o passo seguinte (previsto), resultante natural de um determinado relacionamento contextuado, enquanto a escolha como liberdade, como disponibilidade é encontro, daí, o acaso (imprevisto).
Tratar a escolha através de referenciais de previsibilidade, imprevisibilidade avança e recua o problema às configurações temporais e espaciais. Previsível é todo o futuro que se pretende continuador de um passado ou, ainda, previsível é todo o passado, pois a invasão do contexto de futuro para sua apreensão, lhe confere condições de descoberta, novidade garantida, ressuscitamento. A escolha como previsibilidade só pode ser vivenciada por causa de um passado ou para um futuro, segundo critérios apriorísticos ou metas desejadas.
A escolha de situação, de pessoa, de objeto ou de ideia é o instrumento necessário à manutenção de realizações e/ou aspirações. Instrumentalizada, a escolha fica neutralizada, homogeneizada e passa a ser entendida através de referenciais motivacionais.
Ao visualizar a imprevisibilidade somos remetidos ao acaso. Lidar com o acaso como interseção de probabilidades e possibilidades, espacializa-o, conferindo-lhe, assim, condições de previsibilidade, desde que abrangidas todas as variáveis dependentes, independentes e intervenientes que o configuram. Pensar no acaso como um ponto, privando-o de sua malha constituinte, liberta-o de qualquer previsibilidade. Abstraído de seus consituintes, ele se afirma como figura (sentido gestáltico da palavra) contextualizada no limite, pois ao afirmar-se como acaso deixa de ser continuidade de probabilidades, de possibilidades. Metafisicamente, o acaso pode ser compreendido como emergência desvinculada de qualquer realidade processual. Fenomenologicamente, descritivamente, o acaso é percebido como facticidade, evidência. Popularmente, o acaso é percebido como fatalidade em sua acepção ampla de bem ou de mal. Independente de critérios valorativos, o acaso é o inevitável.
Podemos, agora, pensar na escolha como imprevisibilidade enquanto acaso, evidência ou inevitável - as três realidades são imprevisíveis, sinônimas de escolha, portanto. Se a tomarmos como acaso, neutralizamos nossas motivações. Agarrando-a como evidência, a transformamos em obviedade factual: participação. Ao vivenciá-la como inevitável, apassivamo-nos e contemplamos a escolha, o escolhido.
Em situações de escolha como previsibilidade não vivenciamos o presente, somos comandados por a priori (passado) ou metas (futuro). Apenas na escolha como imprevisibilidade, como evidência, nos constituiremos como presença-presente. Podemos dizer que só há escolha se houver imprevisibilidade, tanto quanto afirmamos que o acaso, a evidência e o inevitável são imprevisíveis, portanto, idênticos, embora difiram entre si pelas relações que possibilitam. O acaso e o inevitável neutralizam a vivência humana posicionada, à medida que o primeiro independe de nosas motivações e o segundo nos exila para contextos contemplativos. A evidência enseja o contexto de participação. Detenhamo-nos aí. Ao dizer que escolha é evidência, dizemos que ser evidente é afirmar-se factualmente, presentemente, como estando-aqui-e-agora-assim-comigo. É a imposição do diálogo, a criação do presente cuja resposta é a escolha; sempre que participamos estamos escolhendo isto ou aquilo, uma palavra, outra palavra, um gosto, uma preferência, uma não preferência etc embora não nos detenhamos em estar escolhendo. Parar para escolher é constatar a vivência de uma omissão, de uma não participação. Só temos que escolher, só precisamos escolher se não estivermos participando, vivenciando a evidência do estar-no-mundo-com-o-outro, com-os-outros, comigo-mesma. Escolher, neste sentido, é constatar a quebra e querer consertá-la, é vivenciar o corte, a fissura e querer emendá-los. O homem livre, autônomo, auto-determinado, não escolhe, sua vida é uma participação, evidência; o homem limitado, sobrevivente, conduzido por necessidades e demandas vive escolhendo, emendando, costurando, “aparando as arestas” da evidência, cobrindo omissões com arremedo de participação, encaixa-se, escolhe, “faz opções”, tem critérios, princípios, metas, certezas.
Por todo o considerado, vimos que a escolha não é preferência, tampouco liberdade, ela é o dilema, o conflito, o querer o melhor, o mais vantajoso, o certo, fugindo do errado, fugindo do prejudicial.
Muitas vezes as pessoas são criticadas por não se permitirem o direito de escolher, por não assumirem suas próprias escolhas, por não perceberem a necessidade de escolher, por evitar escolhas. Na realidade deveria ser questionada e relembrada a desindividualização, a omissão humana que faz atingir abismos: limites onde é necessária a escolha como ponte, pára-quedas salvador, guindaste restaurador. Ter necessidade de escolher ou ser livre para escolher resulta de constantes omissões, fragmentações, alienações vivenciais comandadas pelo compromisso ou pela desindividualização confundida como liberdade - é a não participação. Se vivenciamos as evidências, estamos sempre escolhendo, não temos dilema - que já supõe quebra de diálogo com o outro, com a realidade, comigo mesma. Dilema é o que resulta da vivência do presente como vazio. É a busca do melhor, do mais congruente, do mais satisfatório na tentativa de salvação da angustia, do medo, da ansiedade criados pela não vivência do presente, pela não integração com o outro, pela não participação. Enfim, se temos de escolher, já estamos perdidos e de nada adianta buscarmos a solução. Precisamos nos deter no vazio e este encontro, esta participação será uma evidência, a escolha que nos estruturá enquanto ser-no-mundo-com-o-outro.
Este conceito de escolha como evidência é muito fértil para solucionar impasses e criar transcendências às contingências, aos limites alienadores, fragmentadores. Em psicoterapia gestaltista, ele tem sido neutralizador de impasses auto-referenciados entre deveres, obrigações, anseios e direitos; nos níveis contingentes e relacionais, massificadamente vivenciados como situação de conflito, nos dilemas tipo: “fico com meu marido ou com meu amante? Tenho pena de meu marido, me sinto responsável, mas desejo e gosto de meu amante”, estes dilemas desaparecem quando o indivíduo percebe que o trágico não é a escolha entre o marido e o amante, mas sim constatar sua estagnação, seu vazio, seu oportunismo, sua omissão; é preciso enfrentá-los quebrando seus vínculos alienantes, caminhando, movimentando-se no mundo, sendo.
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* Para maior esclarecimento podemos pensar em preferência como final da trajetória de uma preferência inicial, isto é: prefere A, escolhe A por gostar, pela preferência em relação a A. Notamos dois usos da palavra preferência: primeiro em seu sentido de ação, verbo propriamente dito, depois substantivado, idêntico a gosto.
- "Relacionamento - Trajetória do Humano" de Vera Felicidade de Almeida Campos
verafelicidade@gmail.com
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