Pandemia e aprisionamento

  




Em decorrência da pandemia da Covid-19, estar confinado para evitar contágio, em última análise, pode possibilitar vivência de aprisionamento. Esse aprisionamento faz diminuir as perspectivas de futuro, desde que as mesmas são estruturadas pela continuidade de referências e referenciais gerados na dinâmica do aqui e agora do presente.

Entre quatro paredes, as motivações, as vivências são reduzidas ao referencial constante. Nesse sentido, não há alternância de contextos. Sem a variação do Fundo, as Figuras, as percepções das mesmas são sempre constantes, iguais. Nessas condições, de forma criativa se pode estabelecer o dia do cinema, do exercício, do prazer, das leituras, etiquetando, colorindo os iguais, mas tudo isso é absorvido pelo contexto, pelo Fundo deste presente que iguala: é o confinamento que tudo permeia e tonaliza e desse modo os prolongamentos vivenciais, perceptivos sempre ancoram em limites. O que virá depois? Quando atingir o que deve ser feito? Interrogações nas quais os limites são perguntas. A preponderância desses limites apontam temporalidades anteriormente distantes, mas, que agora se aproximam. O depois passa a ser configurado como não remoto. O que não se pensava, o que era distante se aproxima trazido pelo limite do tempo e do espaço.

Vivências homogeneizadoras neutralizam diversidades. O sutil é amassado pela densidade dos impedimentos. No contexto do estar impedido, a liberdade é curta. Tudo se encurta, daí sempre o confinamento trazer vivências de apreensão, medo, dúvida, incerteza, finitude. E se eu perder o emprego? E se eu não tiver condições de ficar só? E se eu morrer? Todas essas possibilidades sempre existiram percebidas como remotas e no isolamento são pensadas como prementes.

O estar confinado é um detalhe, mais uma possibilidade, uma nova configuração do estar-no-mundo-com-o-outro, e entender essa situação assim é diferente de não perceber o outro. É uma caricatura dessa não percepção do outro, as queixas: “estou perdendo oportunidades”, “não tenho ido a festas, meu mundo está acabando”, “minha pós-graduação foi interrompida, atrapalhando meu futuro” etc. Posicionados além dos limites do presente, as interações são feitas entre as relações de manutenção. Tudo passa por esse filtro, segundo a ótica da sobrevivência: “o que é bom para mim, o que me acrescenta, o que me prejudica”, esses são os parâmetros e o outro não é percebido.

O relacionamento com o outro transcende a imanência biológica e confere ao homem condição de humanidade. Transformar o estar confinado - o se sentir impedido - em possibilidade de outros caminhos é uma transformação que derruba paredes, corta grilhões e restabelece o presente. O que é visto como possibilidade de morte, de perda começa a ser percebido como pausa, “freio de arrumação”, Oásis para continuidade da jornada.


Comentários

  1. A pandemia me fez entrar em contato comigo mesma de uma forma mais profunda, como se estivesse vivendo num mosteiro budista.

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