Arbitrariedade e prepotência - fura-filas de vacinas em Manaus


 

Furar filas de vacinação, em Manaus e em todo o Brasil, é o absurdo que acontece e é totalmente previsível - além de tolerado - nas estruturas caóticas estabelecidas pela lei do mais forte e das “carteiradas” dos poderosos. É o que é tão falado neste país: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

A capacidade de esconder incapacidades, de realizar desejos satisfazendo ganâncias e aproveitando-se das situações é oportunismo. Vivemos uma crise sanitária sem precedentes, de abrangência mundial. O drama da Covid-19, ainda sem tratamento, ameaça, adoece e mata milhares, e transformar essa catástrofe em “balcão de negócios”, em oportunidade para ganhar dinheiro, é criminoso. O que assistimos no Brasil, com o próprio Governo Federal e Ministério da Saúde apresentando um Aplicativo que induz à prescrição de tratamento duvidoso e não comprovado, em verdade até desaconselhado por organismos nacionais e internacionais de saúde, é um exemplo macabro de oportunismo e aproveitamento do caos gerado pela pandemia, com a finalidade de ganhar dinheiro às custas de cidadãos que supõem que exista liderança e controle médico-sanitário por parte destas autoridades.

Muita luta, informações diversas, fake news, desvios e corrupção, até que surge algo palpável: a vacina contra a Covid-19. Essa vitória da ciência desmantela ignorâncias, traz luz, é o esclarecimento necessário em meio as trevas. Entretanto, como as estruturas de corrupção, poder autoritário e desmando subsistem e até prevalecem em alguns lugares, as irregularidades irrompem. “Vacina é ouro, precisamos adquirir, roubar” pensam os que acham que podem tudo. Como roubar? Furando filas, indo além do estabelecido seja utilizando os caminhos do poder onde se consegue, como num passe de mágica, fazer parte do corpo prioritário de funcionários da saúde; seja sonegando doses; seja na atitude populista na qual políticos dizem que se vacinar logo serve como exemplo de coragem frente à população que teme a vacina. Em qualquer dessas alternativas, o intuito é burlar o planejamento estatal de prioridades e satisfazer suas demandas individualistas.

Quanto mais ganância, metas e desejos, mais manipulação dos que estão amorfos, despersonalizados e sem autonomia. Essa é uma das características do populismo político, tanto quanto do autoritarismo que submete e é constantemente exercido sobre dependentes: filhos e outros familiares, assim como empregados. O apoio que oprime também despersonaliza. As fileiras de seguidores e dependentes são, por definição, formadas por omissos que esperam e torcem por resultados. A expectativa de receber vantagens, benesses e brindes pavimenta a despersonalização. Esse processo alienante cria apoiadores, torcedores, eleitores e assim os poderosos são admitidos e mantidos. Nas situações limite - guerras, pouca vacina, alimentos escassos, por exemplo - tudo isso é mais nítido. Ganha quem é mais poderoso e também quem pode pagar. A Alemanha Hitlerista é um triste exemplo deste sistema perverso de privilégios, onde liberdade, vistos diplomáticos e evasões eram comprados. Tudo podia ser negociado, até nos campos de extermínio onde ajudar o inimigo, contra o próprio amigo ou irmão, significava mais um dia de vida. Valia adiar, pois para estas pessoas não importava quantas vidas eram empenhadas ou exterminadas por aquele dia a mais. Quando a arbitrariedade, o despotismo e absurdo encontram ganância, prepotência e oportunismo, muitas monstruosidades e desumanidades podem surgir.

Nestas situações limite que ameaçam viver, tanto quanto propiciam sobreviver é fundamental não incentivar arbitrariedades, pois essas vão aumentar desníveis e desigualdades. Quanto maior a desigualdade de direitos e de acessos, maior a desumanização. É necessário perceber o outro, o semelhante, como igual, só assim pode ser estabelecida a humanidade. Na igualdade se estabelece humanidade. Desigualdades econômicas, sociais, geográficas, intelectuais são apenas aspectos que configuram as diversas trajetórias humanas. Essas situações em nada modificam a humanidade, o ser humano, quando ele é percebido em sua individualidade. A legitimidade do humano deve anular quaisquer posicionamentos e contextualizações redutoras de suas possibilidades, de sua humanidade. A instrumentalização das possibilidades humanas em ferramentas, em criação de ordens para subjugar, matar e aproveitar talentos, aproveitar a força e capacidade do outro, é um processo que ao se realizar o destrói, mas também destrói o ganancioso, o empreendedor, que vira uma máquina de gozo/desejante, como falava Deleuze/Guattari, vira um cofre, um receptáculo amealhador, desumanizando-se consequentemente, máquina acumuladora de energia, simulacro humano.

Perceber esse processo é questionador e também libertador, desde que denunciado e engendrada a sua neutralização. O saber-se prejudicado e a isso reagir é um caminho, tanto quanto o não se deixar cooptar pelas vantagens de mais um dia de vida, ou, no exemplo que vivenciamos hoje, pela vantagem de ser dos primeiros a ser vacinado. Olhar em volta e descobrir uma grande fila para vacinação contra a Covid-19, aguardar o próprio lugar, é, no momento, a grande antítese ao oportunismo, arbitrariedade e ganância. Entender que a fila aumenta em função do descaso, da imperícia governamental, das instituições científicas mal atendidas e mesmo destruídas, é também uma percepção das possibilidades de mudar, tanto quanto do entendimento das problemáticas que nos assolam e estacionam, problemáticas que geram defasagens e consequentemente mais desumanização, mais desigualdade. Não vamos esquecer que estando no mundo, todo comportamento psicológico depende da realidade percebida e vivenciada, e a matéria prima disso são as relações econômicas, sociais e culturais.

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