Caos e esperança

 

Imagem: Divulgação/Governo do Estado de São Paulo
 

Empolgada com a perspectiva de ampliação da vacinação e com a autonomia científica do Brasil na área de vacinas, antecipei a publicação da próxima quinta-feira.
 

Mudanças da água para o vinho são consideradas milagres, prestidigitações ou apreciações incompletas de fenômenos. O inédito, o caráter de transformação mágica só existe quando processos e estruturas não são consideradas. Hoje, 26 de março de 2021, assistimos a esse processo no Brasil ao anunciarem a vacina BUTANVAC criada pelo Instituto Butantan, vacina com tecnologia 100% nacional que evidencia a autonomia do país na sua produção. A notícia parece milagrosa, causa esperança, alegria, revolta, raiva à depender dos contextos a partir dos quais o acontecimento é percebido.

Como um país em pleno caos, sem liderança política, em crise econômica e com mais de 300 mil mortos em um ano de pandemia, consegue isso? Com certeza não é um processo fênix, não é um renascimento das cinzas e da destruição. É uma continuidade, é a força de instituições científicas. É o Instituto Butantan alicerçado em apoio, em lideranças e profissionais que mantêm sua existência em meio a adversidades ao exercício da ciência no país. O Brasil, apesar de dividido e polarizado entre negacionismo e ciência, entre morte e vida consegue manter a chama da ciência, de estudos e consistência de pesquisas, fazendo surgir esperança, ou seja, resultado de trabalho e dedicação.

Sempre que há caos, sempre que tudo parece desaparecer, as antíteses são reduzidas a polos de convergência. Esse processo é unificador pois a partir de contradições aglutina-se o todo fragmentado. Surge mudança pela instalação do novo. É o diferente, o diferenciador, no dizer popular "a luz no fim do túnel", os diamantes escondidos na caverna. Sempre que se radicaliza o caótico, o desestruturado, novos processos surgem e assim é reconfigurado o sistema.

Abandonos, famílias despedaçadas, países destruídos podem ser recriados quando as bases, suas estruturas, permanecem, mesmo que dispersas. As estruturas funcionam como solo sempre fértil para nutrição de sementes nele plantadas. Esses processos nem sempre são percebidos pois amortecidos pelas frustrações e desesperos geralmente não se percebe a transformação, apenas se espera resultados, isto é, mudança imediata. A negação de processos é uma constante nas vivências emparedadas pelo conseguir/não conseguir, pelo dar certo/não dar certo. O que o desespero exige são respostas e soluções imediatas. A negação é esvaziadora: fragmenta e reduz tudo a resultados, ao bem e ao mal. É o pragmatismo, o desespero e a falta de perspectivas.

Esperança é uma expectativa geralmente quimérica, comprometida com resultados, mas pode ser sinônimo de transformação quando antíteses exercidas a transformam em acontecimento: é o novo que tudo transforma. O não ter para onde correr cria saídas, remove montanhas. A persistência, a manutenção abrem caminhos e a continuidade dos processos retira obstáculos negadores de potencialidades. A vida se insinua, reaparece no caos. É transformação, é esperança, é Boa Nova.

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