Problemáticas humanas - questões estruturantes III



Ao se confrontar com os valores culturais se coloca a questão de adequação ou de inadequação. É a verificação, a constatação do estar ou não estar dentro do padrão valorizado. Saber se representa, se significa o que é socialmente considerado bom, melhor e adequado cria escalas de medida, padrões. Caindo em índices inferiores, estando abaixo da média, ou fora da mesma, do que é considerado válido, bom e passível de investimentos e aplausos, o indivíduo se sente subtraído, inferiorizado, mas se amolda, se adapta ao lugar que lhe é destinado. Esse processo é caracterizado por constantes ajustes e desajustes. Buscar adaptação quando se está abaixo do estabelecido como bom constrói pistas de competição onde driblar é uma constante. Nesses casos, parecer ser o que não é passa a ser um despiste fundamental para conseguir sucesso. Truques e muitos recursos são utilizados, tanto quanto um arsenal de comparações é mobilizado. Ostentar o anel de doutor no dedo, ser afilhado da autoridade paroquial e citadina por exemplo, é pavimentador de caminhos e remove obstáculos. A continuidade de vivências desse processo - colocar-se dentro do padrão valorizado - cria inúmeros artifícios que se constituem em regras. O importante é parecer, negar o ser, a própria individualidade. Esse sacrifício da individualidade é o desenvencilhar-se necessário para o triunfo (em diversas sociedades o artifício da miscigenação era a chave mestra para melhorar a "raça", que era entendida como aparência física, hábitos e características). Negar a própria origem (filtrada pelos contextos de escravização) alisando os cabelos, calçando sapatos, por exemplo, era um objetivo constante perseguido pelos relegados à sobrevivência subalterna e discriminada. Na Ásia, China, e Tailândia principalmente, é comum "ocidentalizar-se" via plásticas nos olhos. 

Querer ser a cara ou ter o jeito do opressor, do colonizador, do vencedor é a luz no fim do túnel, é o que orienta quando se quer parecer com o poderoso e se entende que isso é o que leva à vitória, realização e consideração. Negar o que se é significa, nesses contextos, esconder o que envergonha e vitimiza, o que exclui e impede consideração, o que exclui do padrão valorizado. Estar no padrão é garantir aceitação, é ser valorizado. O processo de caber no padrão, aleija, fere, esvazia, robotiza, aliena. A vitória social é a derrota existencial desde quando só significa à medida em que nega suas estruturas relacionais, parentais, e também seus contextos históricos. Desse modo, a vitória do indivíduo é a ocultação do que o constitui, ou seja, todas as suas configurações anteriores: pobreza, etnia, história de vida - ser filho da prostituta tem que ser negado, por exemplo. Nesse sentido, encontramos histórias de superação que se traduzem por constante obstinação em negar vivências, vicissitudes, encontros e desencontros.

Valer e significar pelo poder, pelas vitórias é se incluir no exército de máquinas bem treinadas para conseguir sobreviver, superar e triunfar. Esse processo cria medo, insegurança, fobias e angustias. Sentir-se constantemente na selva, onde o outro é visto como inimigo que tem de ser conquistado e destruído, gera atritos. A vida é caracterizada pela luta, pela destruição, pelo engano e desespero. Não há aceitação de si nem do outro, desde que todo o processo relacional - vivencial - se caracteriza pela construção de disfarces aceitáveis, aparentemente protetores ao destruir o que ameaça. Estes processos de buscar aceitação por meio de adaptação e vitórias são despersonalizantes, geram insegurança, hipocondria e ansiedade. Estar entregue a si mesmo, estar sozinho é a constante situação dominante. O que motiva é a luta/fuga, a caça/coleta, o poder, o ter que dominar essas realizações esvaziadoras.

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