Surpresa e cálculos

 




A percepção do que existe, a vivência do presente se torna exequível quando vivenciamos o que está diante de nós como o que está diante de nós. Esse se despir de desejos e significados faz apreender o que se dá, o que acontece enquanto ocorrência.

Estar diante do outro, do além de mim, do que me continua, quebra aprisionamentos inclusive os de catalogação e sistematização. É a voragem - essa sucessão -, fluxo de vivências que dá continuidade ao que acontece, ou seja, ao que está acontecendo independente do que significa. Essa continuidade de vivências tudo muda. Via de regra acontece o que pode acontecer e assim nada causa surpresa, nem sai do lugar. As utilidades/inutilidades são os legalizadores do que acontece, do que pode ou não deve acontecer. Atualmente, até a própria morte ou a dos outros é calculada, estabelecida ou evitada. Inúmeras proteções e neutralizações são criadas até mesmo a ideia de morte necessária, utilidade descoberta para evitar desgastes, privações e tristeza.

A criação de normas para o que é útil, para o que é inútil obriga os acontecimentos realizarem-se em tempo oportuno. Evitar o inesperado ao se preparar para ele é uma maneira de burlar a vida e tudo que é espontâneo e inesperado que ela enseja. Alçando-se como super previdente, categorizador de imprevisíveis, o ser humano se coisifica. Virar objeto de si mesmo é a primeira divisão conseguida e a partir de sua operosidade, saberes, humores, desejos e conflitos instalam sofisticados sistemas de cálculo. Busca tudo fazer, descobrir uma maneira de funcionar sem utilizar a energia viva, a espontaneidade, o ânimo e ainda assim alcançar os propósitos. Alimentando-se do ser vivo - de si mesmo - consegue desfigurar-se. Quando o ser humano é transformado em máquina de bem viver, ele vive atrás do que pode dinamizá-lo, motivá-lo. Tédio e depressão surgem. A continuidade de busca, de vazio, de desencontro deprime, desumaniza.

Seres amarrados e agarrados à máquina que os protege povoam o cotidiano e para eles são criados parques de diversões, paraísos artificiais, tanto quanto ilhas excludentes que podem abrigar os que primeiro se protegem dos resíduos criados para suas máquinas de guerra e destruição. Essa metáfora, ao longo dos anos, tem sido exemplificada pelos ditadores que se nutrem do sangue de suas vítimas, como Idi Amin na África (Uganda), que foi exemplar no exercício de prepotência e crueldade, e semelhante a isso, inúmeras vezes a submissão de um país, de um povo é representada em pequenas esferas: nas escolas, nos quartéis, nas igrejas, nas famílias. Dominar é quebrar a continuidade de acontecimentos, revertendo-os para objetivos defasados e arbitrários em relação à existência dos demais, dos outros seres.

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