Distorções que estruturam o autorreferenciamento


 

As distorções decorrem da não apreensão da totalidade do que está diante de si. Colocando-se como centro, como ponto de confluência, o indivíduo pensa que o que ocorre deveria ajudá-lo e não prejudicá-lo, e que tudo sempre o maleficia. "Tudo tem que estar ao meu favor, não contra mim", "nada comigo dá certo", diz o exilado do presente. 

Retirar-se do que ocorre, do presente, e resguardar-se em gaiolas passadas ou foguetes propulsores do futuro almejado é lesivo. Retira da vida, do mundo, da convivência com um outro que ainda não foi transformado em objeto temível ou desejado para consecução de desejos. Ser cativo dos próprios referenciais - o autorreferenciamento - é o polarizante de isolamento, consequentemente de distorções. Assim, os acontecimentos são traduzidos pelos referenciais desse indivíduo que se acha o alfa e ômega dos processos. A culpa é sempre do outro, o outro não é confiável, o prejudicou ou tinha que ajudá-lo, assisti-lo, tinha que dividir riquezas, por exemplo, e com essa distribuição ser solidário, amigo e irmão.

Pensando, sentindo e falando a partir dos seus pequenos nichos, a partir de seu bunker, o autorreferenciado sofre. Tudo o frustra. Quando realiza algum desejo, o medo de perder, o questionamento à quantidade do adquirido são constantes. Tudo começa nele e nele acaba. O que começa? O que acaba? Injustiças, vitórias, derrotas, o outro que o aniquilou e que podia ter ajudado, o que ajudou mas não fez mais que cumprir obrigação tardia. O autorreferenciado faz com que tudo seja distorcido, nada é percebido enquanto ocorre pois os filtros esvaziadores e dilatadores dos processos são usados. A realidade é sempre distorcida já que o indivíduo a reduz a suas aspirações, desejos e frustrações. Vive para conseguir o bom, para evitar o mal e quando consegue tem que evitar perder o que conseguiu. Essas vivências são equivalentes às voltas no globo da morte onde a velocidade colapsa todas as direções sob o giro em torno do mesmo ponto. Ansiedade, depressão, medo são as resultantes. Não há diálogo com o outro, nem com o mundo, uma vez que tudo é resumido em termos de vantagem/desvantagem e assim não se conhece, não se percebe o que acontece. Não se percebe a configuração real das possibilidades e das impossibilidades. 

O autorreferenciamento estrutura duas atitudes básicas: ficar de boca e braços abertos esperando alimento, esperando ajuda, ou atingir posições poderosas e obrigar a todos a seus pés a servi-lo, endeusá-lo, reconhecendo sua importância. Característicos desse processo são: o chefe poderoso, o pater famillas dominador, o sacerdote tendencioso, o governante autoritário, a mãe que tudo faz pelos filhos etc. Uma das piores consequências do autorreferenciamento é o aumento da ignorância - o não discernimento - visto que não existe discernimento quando se distorce, quando não se percebe a totalidade dos processos.

A psicoterapia é uma das possibilidades de restaurar a percepção da totalidade e desse modo o indivíduo percebe que se colocar como centro dos processos ou à margem dos mesmos é uma exclusão gerada pelo medo e que, da mesma forma, a inclusão obtida pelo sucesso é igualmente alienadora. É o clássico vive-se para conseguir, para ser poderoso, para ser cuidado e admirado, para ser o centro do mundo, da família, a confluência de aplausos e dedicação. Essa posição, essa atitude é o caminho régio para a neurose, a não aceitação, a insatisfação e desespero de estar no mundo com os outros.

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