Mecânica dos mecanismos

 



No contexto do que é programado e mecanizado, se consideramos as engrenagens, uma parada inesperada do mecanismo possibilita o surgimento do que é espontâneo, ou seja, do não programado. Pensar a espontaneidade a partir da interrupção de programações anteriores contingencia o que é espontâneo, define-o como o não mecânico. Ser não mecânico e ainda estar contido nos mecanismos sistematizadores do mecânico é de extrema complexidade.

Pensar o que é espontâneo independente de seus contextos é quase impossível, pois o espontâneo em relação a B pode ser o mecânico em relação a A. O que é espontâneo enquanto tal requer outros referenciais para ser apreendido. Seria o que salta aos olhos? De onde vem, de onde parte? É o que está contido em um outro referencial? É um antes? Um depois? Ou uma contingência transformada em contexto a partir do qual tudo agora é percebido?

Terremotos e inundações, por exemplo, quebram os sistemas e seus sistematizadores. Criam outras configurações, outras ordens e nelas inúmeros acontecimentos e atos espontâneos surgem. Nas guerras, nas doenças, nos lutos familiares, a solidariedade, a descoberta de perdas são importantes reconfigurações. O choro diante da cadeira vazia, as constantes ausências presentes capturadas por sutis índices fazem perceber continuidades, tanto quanto descontinuidades e perdas. Gritos, choros e raiva são expressões dessas descobertas insinuadas.

Quanto maior a desconfiança, a quebra de certezas e evidências, mais frequente a insegurança e o medo, e também mais comum e espontânea a dúvida alimentadora de descrença. Descrer é espontaneamente reviver, reavaliar toda ocorrência. Não mais ter fé, não mais acreditar é um sentimento/pensamento espontâneo que surge após destruição de evidências que tudo esclareciam e orientavam. O ídolo derrubado, o dogma destruído, o encontro desmistificado, o desengano personalizado e categorizado criam espontâneo caos, espontânea destruição. Surgem, assim, outras ordens geradoras de ocorrências espontâneas. É o "après moi, le déluge", é também o acordar do sono e sonho despersonalizante, é descoberta, é lucidez, mesmo que catastrófica. Muitas vezes é o que se sente quando se perde alguém, um ente querido, ou ainda quando se perde a grande oportunidade, a estrada que conduzia ao sucesso, às vitórias.

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