Disparadores, gatilhos e traumas

 



Explicações nas quais são construídas justificativas para esclarecer o presente pelo passado - atribuição de efeitos a causas - são constantes na apreensão elementarista e distorcida da realidade, dos acontecimentos e problemas. Essas explicações baseadas em causas e efeitos são tentativas de se deslindar, de sair dos emaranhados. É difícil globalizar, pois a apreensão de totalidade exige que não se tenha a priori, exige se deter no que acontece, independente de causas, consequências, vantagens ou desvantagens atribuídas ou imaginadas. A maneira elementarista de apreender fatos, acontecimentos, comportamentos humanos é tão constante dentro do embaralhamento do desconhecimento, que foram criados modos para entender, resumir e explicar dificuldades/facilidades e idiossincrasias, enfim, para explicar características humanas.

 

No séc. XIX, valendo até o séc. XX, a ideia de inconsciente, um termo que era visto como instância psíquica determinante de comportamentos, explicaria o fazer, o não fazer, o gostar e o não gostar, e atualmente a ênfase a esse aspecto é resumida em termos como: gatilhos que são disparadores de reações. Com essa noção de gatilho ou disparador é fácil explicar as crises de pânico acontecendo no trabalho, que nessa visão resultariam de se deparar com o colega barbudo, da mesma estatura que um ex-namorado que enganava, traia e abandonou, por exemplo. Basta apertar um gatilho que são disparados medos, fobias resultantes de vivências desagradáveis e até massacrantes. Os pontos de compressão começam a se constituir em pontes que permitem acessar e esclarecer morbosidades. Essas visões reduzem o ser humano a um enigma, uma esfinge decifrada por meio de seus sintomas. É a total inversão: a parte quando estigmatizada e transformada em todo cria muitas distorções. A redução de acontecimentos e das expressões corporais e verbais a condicionantes sociais e éticos, veicula apenas reducionismo na apreensão dos fatos.

 

Não existem gatilhos, não existem traumas. O que existe é um lugar, um arquivo maior onde as coisas são agrupadas e guardadas. Interpretar e deduzir significados desse acervo é sempre reduzir o todo à parte, é sempre lacerar a unidade a fim de contê-la em referenciais exemplificadores de ideias predeterminadas, ideias estabelecidas antecipadamente.

 

É a impermeabilização ao que ocorre, ao que está acontecendo que cria problemas e dificuldades. Estar de costas para o que acontece diante de si é uma maneira de caminhar olhando para trás. Até Orfeu, até as lendas e mitos mostram como isso é malsão e perturbador. Não houve gatilho na atitude de Orfeu, houve curiosidade, medo, dúvida e desejo de ver Eurídice, a amada raptada que ele agora recuperava. Esse querer saber, esse medo, essa curiosidade... o passado escurece o presente, fazendo com que o mesmo desapareça, seja negado. Já não há saída, abertura, pois ainda se está fechado. O novo não acontece, a imobilidade ocupa seu lugar. Não existem gatilhos, traumas, existem vidas ancoradas nas impossibilidades, caminhos impedidos pelo medo, desconfiança, despropósito e vitimização.

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