Uniões e separações – A ilusão da identificação


 

 

Unir ou separar são questões constantes para o ser humano, para a humanidade, consequentemente são questões político-sociais e psicológicas. É esse movimento de atração e repulsão que faz atritar, e que também faz continuar processos. Essas quebras e continuidades ocasionam o que é falado como “a união faz a força”, tanto quanto “dividir para governar”.

 

Buscar o ponto de atrito que quebra ou faz convergir é, em certo sentido, o objeto de qualquer processo que busca mudanças. Sejam psicoterapias ou reformas nas políticas sociais, todos nisso se estribam, se situam. Concentrar ou dispersar é a maneira de convergir ou divergir que cria antíteses para mudanças. São as transformações dos processos, que algumas vezes são deformados pelas superposições de outras demandas, outros comprometimentos, outros processos. Quando isso acontece surgem novas situações. É uma nova configuração que quebra propósitos iniciais.

 

Interferências sempre encurtam e também modificam processos, às vezes até os desvirtuando. Essa infinita, constante, intensa e poderosa possibilidade de mudar é o que assola propósitos e objetivos. Inicia-se uma imposição de encurtar e diminuir dificuldades, começando também o caminho de distorções, pois interessados na configuração A, a utilizamos como modo para exercer a configuração B, C, D etc. sendo que essas novas configurações são apenas resíduos da inicial. É impossível estabilizar a dinâmica. É impossível separar elementos e reorganizá-los, achando que assim se conseguirá recuperar funções, aspectos, estruturas iniciais.

 

Em psicoterapia, pensar que ajustar um ser humano a determinadas situações é o significado de “cura”, bem-estar e satisfação, implica na negação de todos os processos do estar no mundo com os outros. É a pontualização que cria convergências significadas como satisfatórias ou insatisfatórias. Da mesma forma, imaginar mudanças econômicas e sociais por meio de processos eleitorais é uma ilusão. É um faz de conta. O voto, a escolha não necessariamente é um resultado de processos questionantes e esclarecedores, de escolhas autônomas. Em muitos casos é apenas uma sinalização, um bônus, um ticket que permite adesão a sistemas aleatórios. Quando se vota, se aceita um nome, um perfil, um pensamento, uma face, ou também se cria um grupo, um desejo cooptado e bem remunerado de tudo que é adiado ou destruído. É a torcida, é um resíduo de desejos externalizados e constantemente insatisfeitos ou satisfeitos. É apenas um gesto, pois esse ato nada expressa, nem explica; ele já é, em si, a cota conseguida e garantida por todo um trabalho de competição. É ganhar pontos, nada mais que isso. Entretanto, nos processos atuais, isso é tudo. Se considera a expressão do que quer o povo. Essa grande ilusão - o querer do povo - implica em muitas distorções, em muitos acréscimos e tolices na pretensa luta pelas mudanças. Um aspecto significativo desse processo é a questão do agrupamento, da formação de “exércitos lutadores” por identidade. Essas formações lutadoras equivalem a explicar mudanças visuais pela variação dos aspectos luminosos.

 

Melhor entender que tudo é luz do que se deter nos espectros luminosos por ela criados. Temos seres humanos, não temos homens, nem mulheres. Temos variações da melanina, não temos pretos, brancos e amarelos. Temos sobreviventes e existentes, não temos ricos ou menos ricos, pobres ou menos pobres, temos os processos de exploração. Acentuar características e determinar que por meio delas as situações são definidas é, no mínimo, sonegador das realidades estruturais e de suas diferenciações. Continuando com nosso exemplo, explicar o desespero da não aceitação de si ou do outro como gerado pela cor da pele, aparência ou status social, é desconsiderar os processos de aceitação e não aceitação que configuram o ser humano, sua integridade, sua maldade, inveja e ganância.

 

Quando estamos buscando mudanças não podemos lidar com situações etiquetadas, embaladas e agrupadas. Desse modo não se consegue discernir as estruturas das situações, muito menos trabalhar com o que resulta das mesmas, modificando-as. Escalas, tabelas e QUIZZES (questionários que permitem avaliação de conhecimento) não contribuem para o esclarecimento dos processos, apenas ajudam manutenções rendosas do dinheiro, da ilusão.

 

É necessário discernir, pois apropriar e identificar nada explicam, nada esclarecem, embora permitam criar grupos, forças que organizam o aparente caos. Organizar o caos, é o mesmo que etiquetar doenças sem discernimento, sem conceituação do que é etiquetado.

 

Vida é processo. Processo é movimento. Essa dinâmica, quando “organizada” segundo critérios teleológicos - de resultado - é negada em sua imanência, e aí nada mais se configura para o entendimento de seus processos estruturantes.

 

Estudar o processo da exploração do homem pelo homem por meio de identidades grupais, ou entender a dificuldade humana de se expressar, de se comunicar pelos seus sobprodutos, como medo, raiva, inveja, desajuste, é negar a humanidade do homem, é transformá-lo em produto para classificação e escalas.

 

Questões de trabalho, de luta política e sua organização, só são válidas quando estabelecidas suas estruturas relacionais, sem posicioná-las em receptáculos fáceis de lidar que, no entanto, nada identificam enquanto processo, embora sejam excelentes para gerar palavras de ordem, legislações e reivindicações.

 

Enfim, o dividir para governar atinge, nessa nossa realidade, sociedade ou mundo distópico, esse aspecto fragmentado e híbrido. Exemplificar os efeitos como decorrentes de causas previamente estabelecidas é um empilhamento de resultados, é o organizado que impacta, orienta, mas dispersa e anula conhecimento do que acontece, enquanto acontecido, pois é o acontecer esperado e determinado. É o pró e o contra, é a torcida, é a superestrutura utilizada como infraestrutura, é a distorção, é a explicação enganosa dos conflitos sociais quando não encarados como conflitos econômicos, é a não compreensão do que é imanência de processos, é o desespero frente ao outro, filhos, amigos, amados, por exemplo, quando eles são percebidos enquanto convergências de desejos, aspirações e frustrações.

 

É a distorção perceptiva, a não aceitação criadora de medos e ansiedade. Omissão e ganância, colorindo e impermeabilizando tanto no plano social e econômico, quanto no psicológico.

 

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