A eternidade está no presente

Não estar limitado pelo que acontece (memória e vivência) nem referenciado no que temos ou desejamos, só é possível se vivenciamos o presente, se este nos deixar ocupados sem preocupações nem verificações, sem validações.

Nossa estrutura biológica é aprisionante, o máximo de libertação que conseguimos é mantê-la neutralizada. Ao transcender o limite biológico sem transformá-lo em limite psicológico, se vive o presente. O presente é o contexto específico de cada um com todas as suas direções e redes relacionais. Integrado nele, sem metas, nem a priori, não posicionados se exerce dinâmica.

Não pensar no futuro, não parcializar os dados do percebido por esta dimensão inexistente traz ao homem eternidade. Eu e o outro, eu e o que está sendo vivenciado, é integrado; perspectivas surgem como decorrência e consequência do que se vivencia. Esta descoberta, nova paisagem, exila a mesmice, a repetição e o tédio. Respira-se por respirar-se, isto é tudo, isto é nada, não é resultante, é processo.

Viver os processos de estar no mundo com o outro, consigo mesmo, nos eterniza, nos faz transcender circunstâncias, contingências, consequentemente eliminando valores de bem e de mal, positivo e negativo. O presente é eterno, atemporal, nele não existe avaliações. O não posicionamento resultante desta vivência atemporal é que permite isto, tanto quanto a não existência de categorizações deixa o indivíduo solto, sem base. O posicionamento é o que permite a roda girar, é o depois da criação da mesma, é a colheita, é a manutenção, é o dia-a-dia marcado.

Individualizar a rotina transformando-a é base - pé, mão e olho para empurrar a roda - passa a ser libertador, possibilitador de disponibilidade.

Prometer ao homem a vida eterna, dizer que tudo fica para depois é uma maneira de dominar o bem-estar, o prazer; são as regras do estar no mundo. As religiões, geralmente, são determinantes da educação e das regras familiares; elas esvaziam, educam, dividem para governar. A roda tem que ser empurrada, os sistemas precisam ser mantidos.

Os sistemas precisarem ser mantidos através de suas instituições, mas não podemos ficar acorrentados a esta manutenção, vivenciando o presente se exerce dinâmica individualizante da rotina.


















"On The Road" - Jack Kerouac
"Grande Sertão: Veredas" - João Guimarães Rosa



verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Que texto belo, Vera. Se é que o tempo existe (discussão tão antiga e ainda sem solução) ele é isso que chamamos presente e nada mais e a melhor tradução disto é esta sua bela frase "a eternidade está no presente".

    Abraço

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    1. Ana, o que você sugeriu sobre o tempo, a não existência do mesmo, me fez pensar na permanência/impermanência outra maneira de visualização da temporalidade. O sentido de travessia também se impõe, daí a passagem, a estrada, as veredas do Guimarães.

      Abraços

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    2. Sim, Vera, a impermanência, a passagem… eu penso que a noção de tempo vem quando percebemos as mudanças em nós, nas coisas a nossa volta e expressamos esta percepção com relação as mudanças em tudo como antes/passado, depois/futuro; categorizações ou percepção da percepção do presente, diria você, estou certa? A percepção da sequência e das mutações, como diz o comentarista do Sutra que você citou no comentário abaixo. Neste sentido o tempo não existe, ou como você escreveu, "o presente é eterno, atemporal". Ou, expressando de outra forma, como você diz "permanência/impermanência outra maneira de visualização da temporalidade".

      O que me toca profundamente neste seu texto não é tanto esta questão sobre o tempo, mas o que você diz sobre nossa possibilidade de não ficarmos "limitados pelo que nos acontece, nem pelo que desejamos", nem por nossas circunstâncias sociais etc. Tem frases preciosas neste seu artigo, difícil eleger uma, mas gosto muito desta "Viver os processos de estar no mundo com o outro, consigo mesmo, nos eterniza, nos faz transcender circunstâncias, contingências, consequentemente eliminando valores de bem e de mal, positivo e negativo. O presente é eterno, atemporal, nele não existe avaliações"

      Abraço

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    3. Ana, obrigada pelos seus comentários. Perceber que percebe - categorização - é conhecer que conhece, é saber, ter consciência de, quando isto ocorre o presente não é eterno.

      Abraços

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  2. No livro Desespero e Maldade, de Vera, li uma transcrição do Sutra 52 do livro III de Patanjali – Yoga Sutra, que diz: "Neste presente momento, uno, todo o universo está experimentando uma mudança enquanto todas aquelas características - passado, presente e futuro, existem neste presente momento uno."

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    1. Augusto, ao citar a minha referência a Patanjali (Yoga Sutra) no livro "Desespero e Maldade", seria interessante colocar o contexto da minha citação. É bom para melhor copreensão, para evitar parcialização e distorções.

      Segue, do "Desespero e Maldade, Estudos Perceptivos Relação Figura-Fundo", pags. 28 e 29:

      Perceber a percepção só é possível enquanto prolongamento perceptivo. Perceber a percepção enquanto presente, como vivência do único, é impossível: é uma coagulação do movimento, arbitrária, consequentemente geradora de posicionamento. É como se eu quisesse ser um ser percebendo ser o ser-no-mundo.

      Metafísica mecanicista e onipotente. Prolongamento perceptivo delirante, lembro até do Teorema de Godel.

      Configurar a estrutura relacional do ser-no-mundo é exequível, é possível, basta descrever o processo perceptivo. Atingido este ponto, sob o enfoque psicológico, somos obrigados a encarar a vivência do humano como unicamente presente, não só do humano, do animal também, pois só existe o que é presente. As memórias, as lembranças, se existem na estruturação da percepção da realidade é por serem presentificadas. Esta transformação do passado em presente, esta presentificação é possível graças ao movimento, à dinâmica humana, à sucessão de átimos, o presente. É a temporalidade. É elucidativo transcrevermos o Sutra 52 do Livro III de Patanjali - Yoga Sutra - e transcrever também trechos dos comentários de Vyasa. É a percepção do movimento, da totalidade, da existência, datada de mais de dois mil anos atrás, em um contexto de filosofia Samkhya como fundamentos de técnicas e práticas yoguis.

      "Sutra 52, Livro III: Conhecimento diferenciado do Eu e não-Eu vem da prática de samyama. Comentário: Sobre o movimento e suas sequências: o tempo não é uma realidade substantiva, mas, apenas um conceito mental, o qual entra na mente como um conhecimento verbal, embora possa parecer como algo real para uma pessoa normal. Momento, todavia, é relativo aos objetos e repousa na sequência, porque sequência é a sucessão de momentos, a qual é chamada tempo pelos yoguis com conhecimento do tempo. Dois momentos nunca estão presentes ao mesmo tempo. Não pode haver sucessão de dois momentos coexistentes, isto seria impossível. Quando um momento mais novo sucede a um mais antigo sem interrupção, isto é chamado uma sequência. Por esta razão (o que chamamos) presente é, apenas, um único momento e um momento mais antigo ou mais novo não existe. Assim, não há uma combinação de passado, presente ou futuro. Aqueles que são passado e futuro são para serem explicados como inerentes às mutações, isto é, passado e futuro são apenas uma concepção geral - quiescente e não manifesta - de mutabilidade com o efeito de que consideramos as mutações ausentes como ocorrências tanto em momentos passados como nos futuros. Neste presente momento, uno, todo o universo está experimentando uma mudança enquanto todas aquelas características - passado, presente e futuro - existem neste presente momento uno."

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  3. Oi, Vera.
    Só hj pude ler seu texto. É incrível. Sempre entendi que só o presente existia (a vivência só se dá no presente), mas pensar nele como eterno (a vivência do presente no contexto do presente), amplia, é libertador.

    Bjs.

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    1. Iona, é realmente surpreendente como a reversibilidasde dos contextos permite mudança de percepçao, consequentemente de pensamento e de vivencias: limites podem ser transformados em liberdade etc. Obrigada por compartilhar.

      Beijos, Vera

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