Disciplina

A disciplina permite ampliar ou restringir contextos relacionais. Por exemplo, ao sistematicamente se fazer  registros, lembretes prévios ou posteriores, são estabelecidos referenciais; são criados quase que palácios da memória*. Esta reconfiguração do existente é uma marcação de dados ou diluição dos mesmos. Quanto mais disciplina, mais próximos da realidade vivenciada estamos, tanto quanto mais distantes da mesma poderemos ficar.

A concentração do yoga, as técnicas dos exercícios corporais, os procedimentos médicos, enfim, rotinas, tecnologias, andaimes e suportes estabelecidos, disciplinam e organizam.

Disciplina é organização, é técnica, é rigidez. A organização disciplinada cria motivação, pensamentos e desejos, estabelecendo padrões. Isso pode realizar tanto quanto alienar.

Seguir o riscado, sem saber quem riscou e o que significa, configura a rigidez do apoiado - é a marca do que quer acertar, não errar. Disciplina é acompanhar a organização intrínseca, não é criar aderência. Toda vez que surge esta inversão, perdemos a liberdade, viramos escravos do que nos apoia, do que nos disciplina.

Não se esgotar, não se reduzir ao que segura, não se individualizar pelo invólucro, não se deter na aderência é essencial. A disciplina é uma mediação fundamental como tal e totalmente obsoleta quando estabelecida, determinada e transformada em propósito, objetivo, motivação e desejo de vida. A incessante busca de perfeição do obsessivo, o desespero do faltoso em mais uma vez falhar, não fazer o certo, o devido, são aspectos de seres disciplinados (processo) transformados em entidades disciplinadas (objeto).

A libertação da aderência, a libertação dos automatismos, do que é mecânico, rotineiro, revela sempre o novo, o característico, o definidor relacional - o imanente dos processos. Confrontações, processamentos habilitam transportes funcionais tanto quanto criam deformações estruturais.

Estruturar contextos disciplinadores é libertador, viver em função dos mesmos é aprisionador.


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* "Palácio da Memória'' é uma técnica de memorização que ficou muito conhecida depois do livro de Matteo Ricci, jesuíta que viajou para a China e a usou para aprender chinês. Embora difundida por Ricci, a técnica se origina na Grécia, com o poeta Simônides de Ceos, sec. VI a.C.



- "Tudo que é sólido desmancha no ar", Marshall Berman

verafelicidade@gamil.com

Comentários

  1. Mais uma abordagem fascinante a um tema tão espinhoso, Vera.

    Adorei as frases:

    "Disciplina é acompanhar a organização intrínseca, não é criar aderência... Estruturar contextos disciplinadores é libertador, viver em função dos mesmos é aprisionador."

    Basta pensar em tudo que somos (nosso corpo por exemplo) e no que está a nossa volta (a natureza por exemplo) para entender o que você fala sobre a disciplina, a organização intrínseca, aprisionar-se ou libertar-se; adorei isso. Fico pensando no que aprendemos em artes plásticas, por exemplo, que o bom artista é 50% técnica, 50% improvisação e a técnica é resultado de disciplina, muita disciplina mesmo, mas se ele "se aprisiona" na disciplina, o resultado artístico é mediocre. Enfim, em todas as artes é assim, principalmente na arte de viver, não é?

    Abraço

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    1. Ana, boa sua menção do conflito entre técnica e improvisação, amplia bastante o campo do "para pensar".

      Abraço

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    2. Obrigada Vera. Eu acho maravilhoso este tema, adorei você escrever um artigo sobre ele. Penso que quanto a este conflito entre técnica e improvisação eu acredito que é a disciplina que resolve; ela leva ao domínio da técnica a tal ponto que esta não impede a espontaneidade da improvisação, a espontaneidade criativa; claro que dentro dos parâmetros delimitados pela própria técnica que é o elemento identificador ou definidor. A disciplina gera uma maestria, uma familiaridade com o conhecido, que liberta para o imprevisto, para o novo. Ela tem a ver com o 'como fazer' não com 'o que fazer'. Acho um bom exemplo disto, a dança, como cita Milena em seu comentário, e me lembro também das improvisações características da música clássica indiana. Mas acima de tudo, jamais esquecerei esta sua frase: "A disciplina permite ampliar ou restringir contextos relacionais"; sem lucidez quanto a isto que você afirma, tudo o que eu disse cai por água abaixo.

      Abraço

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    3. Oi Ana, concordo e penso que ao globalizar e questionar tudo se recria, tudo se reorganiza e a fragmentação é superada. Isto é disciplina, é vida ou como você e Milena falaram, é arte.

      Abraço

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  2. Vera!
    Você esclarece perfeitamente o tema que tocamos pouco tempo atrás. Palavras suas naquela ocasião : " A técnica é uma ferramenta que amplia ou encurta horizontes."
    Eu dizia que a disciplina, a técnica é o que torna possível a improvisação, os arroubos criativos, a liberdade de expressão do bailarino. É um meio, e não o fim. Interessante é que aprendemos a disciplina desde tão cedo, que passa a ser mesmo uma "organização intrínseca". E sim, é libertador, na arte da dança como na arte da de viver, como bem disse Ana. Adorei! Beijos, Milena

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    1. Perfeito, Milena, muito bem expressa a sua idéia de integração como criadora de uma nova ordem; isto permite inúmeras implicações conceituais e vivenciais.

      Beijos

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  3. Vera e Ana,
    Muito bom participar dessa conversa! :- )
    Beijos,
    Milena

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  4. Eu também acho uma ótima conversa, Vera e Milena... rs.
    Abraços

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  5. Oi Vera, gostei muito da sua abordagem à questão da disciplina e da menção que fez ao yoga, principalmente por colocá-lo como concentração - é raro encontrar pessoas que conheçam esta definição. Como você afirma no seu artigo, o método yogui exige disciplina, que se não for bem entendida, gera aberrações como fakis e tapas mortificadoras, ou seja, os que "seguem o riscado sem saber quem riscou e o que significa". Toda a disciplina do yoga visa um tal controle do corpo ao ponto em que ele deixa de exigir, praticamente deixa de significar e o yogui conecta-se com o infinito, entra em outra dimensão, a dimensão de kaivalya, liberdade absoluta. Se não se entende esta dimensão transcendente do yoga, o método e a disciplina tornam-se sufocantes, uma escravidão como você diz. Gostei muito dos comentários da Milena e da Ana no campo da arte e realmente as ragas indianas são grandes exemplos de disciplina gerando liberdade e condição de criatividade.

    Beijos,

    Lidia

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    1. Oi Lidia, obrigada pelas explicações sobre a disciplina do yoga e suas trascendências.

      Beijos

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  6. Legal esse debate envolvendo o Yoga.

    No entanto, sinto que é necessário diferenciar as técnicas e disciplinas que o Yoga pode utilizar e o que de fato seja o Yoga.
    A palavra Yoga tem muitas definições diferentes e complementares, e os próprios sutras do Yogasutra, os quais falam a respeito do que é o Yoga, tem significados mais e mais profundos conforme nosso entendimento se torna mais claro e amplo.
    Creio que Yoga como "concentração" é apenas uma das possibilidades de compreensão.

    Falar em "tapas" (disciplinas cuja finalidade é a purificação da percepção) isoladamente não é o que ensina o Yogasutra, p. ex., pois alí se diz que isso deve estar acompanhado de svadhyaya (estudo a respeito de Si) e isvarapranidhana (uma atitude de aprendiz em meio a tudo que nos acontece, colocando total atenção ao que fizermos como se fosse uma oferenda, e aceitando incondicionalmente os frutos de nossas ações e tudo o mais que nos acontece).

    Além disso para saber mais profundamente o que seja o Yoga, acredito ser necessário mais do que análises de textos traduzidos do sânscrito para o inglês ou português. Acredito que isso dê mta margem a interpretações e noções equivocadas.
    Pra mim, estudar Yoga sozinho é como tentar fazer terapia sendo o próprio terapeuta...
    Na verdade, em sânscrito, uma das palavra que traduzimos por professor, Vaidya, pode também ser traduzido por terapeuta.
    Minha experiência, apesar de ser pequena, me ensinou que é importante um professor/terapeuta competente para estudarmos Yoga, o qual tenha estudado, por sua vez, com outros professores/terapeutas competentes... e assim por diante.
    Penso também que isso seja raro nesses tempos de "shopping center" em que vivemos, onde mtas pessoas confundem Yoga com ginásticas que muitas vezes vão para o lado diametralmente oposto ao Yoga, tornando-se verdadeiras disciplinas alienantes.

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    1. Bem, Diego, este não é um blog sobre Yoga e não me sinto à vontade, não acho adequado uma discussão longa e técnica sobre a disciplina yogui. Com certeza existem muitas interpretações e junções da filosofia yogui com outras ideologias, gerando várias abordagens. Morei anos na India, me formei em Yoga Clássico em um Instituto indiano, tenho um desses professores a que você se refere (mas não vejo nenhuma relação entre o Guru e o terapeuta) e me baseio também nos Yogasutras de Patanjali e seus comentaristas oficiais e tradicionais para interpretar o segundo sutra, definição básica do Yoga ("yogacitta-vrtti-nirodhah") como pausa, concentração. Achei excelente que a autora do artigo o tenha colocado assim, demonstra um conhecimento invulgar e apropriado para os propósitos do seu texto. Tapas (que também tem definições diferentes da que você deu no seu comentário) tomada isoladamente é para mim o que mencionei antes, gera o fakir, o tapasya, a mortificação, a aberração, é o que o artigo descreve como escravidão à disciplina. O próprio Buda já dizia isso 5 séculos antes de Cristo.

      Lidia

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    2. Lídia,

      grato pela sua resposta. Fico contente que exista um espaço como esse para dialogar e aprender, além de comentar.

      Não é um blog a respeito de Yoga, isso não me parece difícil de compreender.
      E além do mais achei bem legal o artigo, concordo com suas idéias.

      Acho que me expressei mal quando disse “legal esse debate envolvendo o Yoga”, pois o que está sendo comentado pelas outras pessoas é mais amplo que isso. Escrevi daquela forma depois de ler o seu primeiro comentário, que fala praticamente só da forma como tu compreende o Yoga.

      Morar na Índia e estudar com professores indianos não necessariamente demonstra conhecimento de Yoga. Assim como dizer que "fazer terapia" não significa necessariamente se libertar de hábitos e padrões ignorantes, já que existem mtos terapeutas que, por não terem competência, mais atrapalham do que auxiliam seu paciente.
      A única coisa que mencionei é que acredito ser necessário um professor competente. E de forma alguma me referi a professores indianos... a competência de um professor não depende e nem é ampliada pela sua nacionalidade. Na verdade conheço histórias e já li relatos de muita picaretagem de "professores" de Yoga indianos...

      Minha intenção aqui é apenas colaborar com a minha experiência do que venho aprendendo de Yoga, já que essa palavra foi mencionada no artigo, na sua acepção de concentração, e foi comentada por ti também. E sinceramente não creio ter sido mto técnico no que escrevi. Ficarei feliz se me mostrares em qual trecho isso te pareceu assim, e o porquê.

      E essa questão de tentar "ordenhar o leite da barba de um bode esperando conseguir leite" é mto mais velha do que Cristo e Buda...

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    3. ops...
      quis dizer "tentar ordenhar a barba de um bode esperando tirar leite"...hehehe

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Diego,

    Só por ser mencionada a palavra yoga como concentração

    (você escreveu: "Minha intenção aqui é apenas colaborar com a minha experiência do que venho aprendendo de Yoga, já que essa palavra foi mencionada no artigo, na sua acepção de concentração")

    você agride, traz bode e "bodes". Por favor esta atitude não é nada yogui, sequer educada.

    Anos atrás citei Patanjali em meu livro "Desespero e Maldade", agora cito o Sutra 34 do Capitulo II, diz:

    "Evil thoughts are the causing of injury to others etc. whether done, caused to be done or permitted to be done. They are preceded by desire, anger and ignorance; they are mild, middling and intense; they result in infinity of pain and wrong knowledge; there is therefore (the need of) cultivating the habit-of-thinking to the contrary."

    "Pensamentos maléficos são a causa de danos aos outros etc sejam eles feitos, mandados fazer ou permitidos fazer. Eles são precedidos pelo desejo, raiva e ignorância; eles podem ser brandos, medianos ou intensos; eles geram uma infinidade de dor e conhecimento errôneo; existe portanto (a necessidade de) cultivar o hábito-de-pensar o oposto."

    Abraço

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  9. Oi Vera,

    grato pela atenção.

    Gostaria de saber onde estão os "bodes" que mencionaste. Podes me mostrar?

    Seguidamente leio seus artigos e percebo neles muitas críticas a respeito de outros sistemas de psicologia. E, a não ser que esteja enganado, não acredito que tu faça essas críticas com intuito de agredir as pessoas que se dedicam e esses sitemas. A impressão que tenho dos artigos é que são um convite à reflexão.

    Pois então, a minha intenção essa também. Estou em busca de aprendizado, de diálogo. E se alguém se sentiu agredido, isso pode ser porque por trás da leitura que fez de meus comentários/críticas houve "desejo, raiva e ignorância". Acredito que um estudo com um professor competente em Yoga certamente poderia ser muito benefico para esclarescer essa motivação. Minha pequena experiência nisso (e tb a de várias outras pessoas com quem dialógo, não apenas no meio do Yoga) vem me ensinando que, se ficarmos apenas na erudição de leituras de escrituras, muito dificilmente alcançaremos clareza a respeito do que move nossa ação.

    Pode ser que as palavras que utilizei não tenham sido nada "yogui". Da próxima vez tentarei ser mais cuidadoso.
    No entanto, julgar uma atitude de alguém sem saber verdadeiramente qual foi sua motivação, isso sim soa muito menos "yogui", seja lá o que alguém possa entender por isso...

    E na real mesmo não estou em busca de me enquadrar num conceito pré-definido por comentadores do que seja ser "yogui"... Pra mim isso seria parecido com querer continuar agradando papai e mamãe para receber sua atenção...
    O que busco mesmo é ser eu mesmo, e cada vez mais estar aberto ao diálogo e ao aprendizado.

    Abraço!

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  10. Mais um grande texto, Vera. Vivemos mesmo numa sociedade cheia de escravos da disciplina (e da falta de disciplina) e de arrogantes repetidores de verdades ou regras pre-estabelecidas.
    Foi muito bom poder mergulhar nessa visão da disciplina como sendo "acompanhar a organização intrínseca" das coisas. Vejo claramente aqui a descrição da disciplina (que muitas vezes me falta, rs) fundamental para a prática do yoga, por exemplo.
    Ótimos também os comentários de Lidia, exemplo perfeito da idéia central do texto, de como uma prática/filosofia tão transformadora como o yoga, pode ser distorcida e aprisionar ao invés de libertar.
    Bjs,
    Ioná

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  11. Olá Vera, Hybris resolveu visitar seu blog novamente… :-) … ( irresistível dizer isso… rsrsrs). Eu acho esse blog muito erudito e elegante, assim como a maioria de seus leitores e comentadores, não só elegantes mas conhecedores e sinceros nas suas colocações, como é o caso da Lídia, não sei onde ela vive, se dá aulas de yoga, mas se eu a descobrir em São Paulo, vou procurá-la para fazer yoga, adorei as suas colocações.

    Abraço

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  12. Boa lembrança, Ana, e você trazendo Nêmesis novamente. Será o eterno retorno? Rsrsrs.
    Obrigada.

    Abraço

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  13. Vera,Que tema magníficos e que textos!!!
    Tenho aprendido, no processo terapêutico, o real valor da disciplina, como ajuda a afastar o caos ,a restaurara a "ordem interna".Estou certa!?
    A leitura semanal do seu blog, tem sido um contínuo aprendizado dos conceitos,coerência e refinamento.
    Esta semana tbem odorei os comentário de Lídia, "contextualizados" que encheram minha "alma" de alegria e contentamento.bjos Ana Crtistina

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  14. Oi Ana Cristina,

    Obrigada pelos comentários. O que se restaura é a ordem intrínseca; interno e externo existem apenas no ponto de vista coloquial ou nas visões dualistas da psicanalise. Tambem gostei muito do comentário de Lidia.

    Beijos,

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  15. obrigada pela correção e desculpe os erros de português.bjos,Ana Cristina

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