Interrupção e continuidade

Os processos são infinitos, o movimento é eterno. Ao nos relacionarmos, estabelecemos limites, posições, espaços. Descontinuamos, interrompemos para continuar. Isto cria tensão, cria motivação. Bluma Zeigarnik, uma pesquisadora dos fenômenos da memória, descobriu no início do século passado, que as tarefas interrompidas eram frequentemente mais memorizadas, mais lembradas que as completadas. Esta experiência é muito fértil; podemos entender a  motivação, o estar interessado em algo ou alguém em função desta descontinuidade, desta interrupção. O que eu chamo de "efeito Zeigarnik" explica a tensão criada pelo que não é concluido.

As sequências relacionais vivenciadas em contexto de não aceitação, de autorreferenciamento são ilustrativas de como o interesse ou desinteresse, o ânimo ou desânimo variam em função de metas realizadas, completadas ou situações instigantes sempre insinuadas e nunca definidas.

As técnicas de manipulação política, a propaganda, a demagogia são sempre um exemplo desse efeito Zeigarnik: motivar é gerar esperança que quanto mais distante fica, mais motiva.

Estar motivado é querer continuar o que se está vivenciando. A sensação de completar equivale ao terminar, encerrar, não oferece perspectiva de continuidade, é alívio ou realização.

O completo, íntegro é tedioso para quem garimpa sucesso, riqueza e bem-estar, por exemplo.

Interrupção, não conclusão do que se realiza estabelece insatisfação, cria tensão, estabelece meta ou gera perspectivas à depender da aceitação dos limites existentes.

A interrupção, pelos vazios preenchidos de motivação, gera continuidade. Frustrações esmagadas, sepultam os desejos que as engendraram. Este progressivo esvaziamento faz com que não exista motivação. O presente é vivenciado como expectativa; o pregnante, a figura (elemento figural) é o que vai acontecer, é independente do que se está vivenciando. É o rompimento da continuidade, é a estagnação.

Continuidade não é manutenção, continuidade é a única maneira de mudar, desde que ao interromper cada sequência, se recria, continua, graças à motivação que é intrínseca ao processo de interrupção.

No indivíduo fragmentado, dividido, parcializado, não há o que interromper, não há consequentemente o que continuar, motivar. São "rochas" inanimadas, pontualizações existentes, onde o que se busca é ponte de união, de complementação.

Na psicoterapia gestaltista, o questionamento, as novas percepções dele resultantes, criam espaços de tensão, de motivação, onde se retorna ao interrompido. Aliviar é sedar, tensionar é acordar.

Interrupções conseguem recuperar o contínuo estar no mundo através das demandas e sinalizações criadas pelos encontros e desencontros do que se faz e do que se deseja, pensa ou precisa fazer.



- "Livro do desassossego", Fernando Pessoa

verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. Vera,
    Muito interessante seu texto. Parece que cada frase ou parágrafo abre para um tema fundamental na sua teoria. Lembrei muito de “Todo relacionamento gera posicionamentos, geradores de novos relacionamentos, infinitamente”. Entendi nesse caso que o posicionamemto é a interrupção responsável pela continuidade. O autoeferenciado está preso a posicionamentos, não há essa reversibilidade, por isso lhe falta a continuidade, o questionamento, o se dedicar ao processo de mudança, é isso?
    Bjs

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  2. Oi Vera, como as quintas-feiras têm sido estimulantes para mim por causa do seus textos, este especificamente é maravilhoso, mostra claramente a minha divisão e minha problemática, por outro lado ele é muito motivador, beijos.

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  3. Olá Vera, que interessante o seu conceito de "efeito Zeigarnik"! Que interessante também as conclusões da pesquisadora B. Zeigarnik sobre memória!

    Lendo seu artigo fiquei lembrando da palavra "perfeito", que remete a "acabado", "completo". Perseguimos tantas coisas, perseguimos a perfeição, que deveríamos ficar mais detidos nela; mas sempre penso que nos perdemos, nos envolvemos demais com a imperfeição, parece que nos sentimos atraídos por ela! Seu artigos me esclareceu tudo isso, "limpou" meus pensamento :-)

    Gostei muitíssimo! Obrigada.

    Abraço

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    1. Oi Ana, toda meta quando realizada esvazia, por isso as pessoas não se detém no que buscavam. O interrompido pode ser o imperfeito, motiva.

      Abraço

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