Marcos civilizatórios - Duas ceias

O Banquete de Platão


O ir além do próprio dia a dia da sobrevivência e manutenção constrói dimensões diversas para o humano. Acompanhar o processo de seu estar no mundo, configurar e atribuir significados aos mesmos estabelece rotinas e rituais. A descoberta do fogo, possibilitando cozinhar, leva a abandonar o cru e, assim também o perecível, o que não repõe o necessário para a nutrição. A longevidade, a durabilidade do que é caçado como alimento que supre, foi conseguida. O fogo conserva! Essas pequenas descobertas no mundo pré-histórico equivalem à descoberta do transistor. Portabilidade, adequação e simplificação permitem ritualizações que transcendem o mero caça-coleta que caracterizava as sociedades antigas.

George Steiner, no final de seu livro “Nenhuma paixão desperdiçada”, ao contar a experiência de inúmeras significações, a complexidade cênica e os jogos dinâmicos entre sutileza e generalidade, enfatiza nosso legado cultural marcado por duas ceias: o banquete de Platão e o Evangelho do Apóstolo João. Para ele: “a primeira dessas duas ceias termina com a luz cotidiana de um dia tranquilo na vida de Sócrates, com a água de suas abluções e com sua sabedoria mais elevada que nunca. A segunda termina com uma dupla escuridão: a do eclipse solar sobre o Gólgota e a infindável noite do sofrimento dos judeus.”

Estabelecer o marco de duas ceias é muito interessante pois mostra como a ritualização, que se constitui em transcendência a finalidades e conveniências, possibilita também convívio, regras, temores, angústia, amizades e passa-tempo. As ceias, suas ritualizações, são formas de ultrapassar a necessidade de suprir, de alimentar, e então atingir o conviver com todas as suas agruras e alegrias.

Marcar, comparar, identificar são operações resultantes de transcendências, sendo assim, marcos do processo civilizatório. Interessante notar que o alimento também, em sua função precípua de sobrevivência, a ela retorna, ou ainda, os marcos transcendentes civilizatórios de nossos processos societários ainda estão presos à sobrevivência. Filosofia e seus desdobramentos, tanto quanto religião, seus gurus e avatares, continuam sendo o que vai conduzir a humanidade a algum ponto superior, ou fazê-la evitar despenhadeiros. A transcendência dirigida é como se fosse o colocar de cabeça para baixo, como se fosse o pôr-às-avessas os processos rés-do-chão sobreviventes que configuram nossa sociedade. Regra, dogma e ética nos organizam e essas ceias são paradigmas que mostram as duas formas de liberação do humano: confiança e crença. Confiar nos desdobramentos de suas percepções, de seus critérios estabelece pontos de solução, tanto quando acreditar na redenção dos próprios atos por meio do Mestre, do Deus estabelece compromisso e regra que ampliam sua condição de sobrevivente.

A filosofia, a ética, a consideração do próximo, seja por invejá-lo, traí-lo ou seguí-lo, é um momento novo, é um marco civilizatório de nosso estar no mundo.


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