Percepção do Outro - o outro percebido como eu mesmo VIII

 




"O outro sou eu" - essa divisão - implica em autorreferenciamento. Os níveis do autorreferenciamento chegam a tal ponto de fragmentação que não existe mais questionamento ou comunicação. Como ilhas, nada esbarra, nada questiona. O outro é a própria pessoa.

Nas vivências delirantes, nas alucinações psicóticas, no desejo de explorar, de se dar bem, de utilizar o outro - seja filho, parente, amigo ou inimigo para consumação dos próprios desejos - esse processo de autorreferenciamento é encontradiço. "O outro sou eu próprio". Esse é o artifício que exila qualquer possibilidade de reconhecimento e questionamento. 

Reduzir tudo a si mesmo, pontualizar a existência é um desejo desesperado de ter um ponto de atuação, um ponto de gravitação a partir do qual as situações se estruturem e se definam. Uma vez pontualizado, só por meio da recriação de retas que se encontram e desaparecem é que se pode recriar processos. No processo psicoterapêutico é frequente encontrar essas estruturas, essas configurações. O indivíduo só sabe o que precisa, o que quer, o que não quer. O mundo é reduzido ao que é bom para si, ao que tem que ser atingido e ao que é ruim e tem que ser evitado. O outro é o aspecto de si mesmo sob forma de imagens, desejos, aprisionamento. É a máquina desejante de Deleuze, a esquizoidia de Guattari. É o não ser, sendo o que não é, o representado, o que é significado, após a divisão de sua imanência dispersa nas circunstâncias que o limitam. São os esconderijos da não aceitação, buscando provar que nada é descoberto. São esfinges que não propõem mistérios, querem apenas aplausos como elucidação de seus enigmas. No nível do delírio já não se busca nada, salvo a não interrupção de seus devaneios seja por aprisionamento, seja por tentativas de encarceramento. Não há sensação de perda, pois o que se encontra é o perdido: o eu mesmo, que como tal é o outro, mas que passa a ser o eu. Desespero, drogas, pânico, frustrações criam essas vivências geralmente passageiras, descontínuas. Quando elas continuam surge o que se costuma chamar de loucura.
 

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