Tédio e liberdade


 

Não é muito frequente, mas acontece que a certa altura da vida não se tem porque lutar, não se tem o que descobrir, o que querer. Para muitos isso se resume em uma palavra: tédio. Tudo acontece sem dificuldade. A vida transcorre macia e monótona.

Admitir que o tédio resulta de não ter que lutar ou de estar satisfeito é uma colocação reducionista que transforma o ser humano em um conjunto de necessidades, que quando satisfeitas o levam à homeostase e assim reduzem suas motivações. A luta vista desse modo é um processo voltado para redução de tensões e necessidades. No entanto o ser humano não é apenas um sobrevivente, um organismo condicionado, ele é antes de qualquer coisa alguém que diante do mundo percebe, pensa, interroga, caminha, descobre, enfim, transcende e estrutura processos outros, principalmente linguagem, questionamentos e dúvidas. Tudo isso pode ser resumido dizendo que o ser humano, orgânico, voltado para a sobrevivência, tem além disso, percepção de si, do outro, do mundo enquanto possibilidades relacionais que vão bem além das necessidades contingentes. A resultante é que ele pergunta, ele caminha, nem sempre com direção, mas ele vai além do traçado, ele pode ser livre.

Liberdade é a possibilidade de parar, de caminhar, de reagir, de não reagir. Viver a vida sem essa dimensão, sem liberdade cria tédio. Ao realizar propósitos estabelecidos, o máximo que pode ser feito é repeti-los, às vezes ad infinitum até a morte. Essas cadências repetidas, por isso mesmo cansativas, esgotam possibilidades, desde que elas não são vislumbradas.

Quebrar continuidades, sair de espaços com os quais se sente familiaridade requer riscos, mesmo que os riscos sejam apenas considerados como não existência de parâmetros. Tudo que está metrificado, dimensionado, contém e constrange no sentido de limitar, e assim, consequentemente, é o repetitivo que impede. O fazer porque faz todo dia é tão igual, que ao ser imaginado, antecipado cria desânimo, preguiça, monotonia.

Estar em qualquer situação por estar, querer por querer, enfim, a atitude não expectante, não pragmática é renovadora, quebra sucessões, muda a repetição do som da gota d'água que ensurdece e enlouquece. O nada, o devir, o não saber o que vai acontecer, o não querer que nada aconteça, o estar entregue ao limite do cotidiano aparta o tédio, pois não se sabe o que vai acontecer, embora se saiba o que está acontecendo. É a surpresa consigo mesmo, com descobertas e incertezas que mudam mas que tudo explicam, é isso que vai estruturar a liberdade de estar no mundo consigo mesmo e com o outro.

É assim que a mesmice, a certeza, o tédio são quebrados, esclarecidos, transformados. Vida é contradição, é intensidade. Toda vez que esses processos ficam minimizados a monotonia se instala. Quanto maiores forem os ingredientes pessoais, histórias de vida, processos questionados, continuidades e descontinuidades, mais antíteses, consequentemente mais mudanças, mais novidade, menos repetição, menos tédio. É exatamente esse processo que caracteriza o ser livre, não depender de códigos e regras, ou da busca de vantagens e garantias que ao longo dos processos esvaziam. As metas aprisionam, comprometem em função do esforço para manter vivo o conseguido, sejam filhos, profissão, status ou condições sociais.

Liberdade é a dimensão existencial que se configura como humanidade, como espontaneidade individualizada por meio de processos questionadores. Estar preso às aparências, ao que conseguiu e aos medos é desanimador, amedrontador cria impasses e mais imobilidade, mais aprisionamentos expressos por exemplo em nunca se saber o que fazer, onde se divertir, o que vai dar lucro, o que deve ser buscado, o que não vai dar prejuízo e deve ser evitado. São marcos pequenos para uma vida humana. Esse apequenamento ajusta, faz sobreviver, confere vitórias, mas adoece, entedia, deprime ao contingenciar o humano às dimensões do que é oferecido pela família, pela sociedade, pelas religiões confortantes e orientadoras.

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