Polarização, cismogênese, divisão

 

Atualmente, no Brasil e no mundo, o que mais se comenta é a chamada polarização. Tudo convergir para uma opinião, transformando a mesma em verdade, é um absolutismo que neutraliza processos, exagera e diminui realidades, fatos e acontecimentos.

Essa atitude de promover posições em função de convergências ou divergências é antiga e universal. Em 1935, o antropólogo e estudioso de psiquiatria Gregory Bateson criou o termo cismogênese (conforme ele próprio afirmava, desenvolveu esse conceito influenciado pela observação de comportamentos esquizoides) com o qual pretendia designar um padrão de comportamento que consiste na tendência de indivíduos ou grupos de se definirem por contraposição, pelos opostos e contrários em relação a outros, e assim aumentarem as suas diferenças no diálogo, interação e confrontação. Diferenças que antes da interação pareciam menores ou atenuáveis, tornam-se maiores e mais intransigentes à medida que ocorre a interação. Essas suas conclusões foram decorrentes de pesquisas etnográficas realizadas na Nova Guiné, mais especificamente entre o povo Iatmul que vive às margens do Rio Sepik (atual Papua-Nova-Guiné). Aí vivendo e estudando seus rituais e normas societárias observou manipulações de gênero e papeis exercidos em determinadas cerimônias chamadas Naven, que comemoram e marcam diversos atos importantes nas vidas de seus membros. Nos rituais Naven - que variam de cerimônias simples a muito complexas e motivadas por acontecimentos corriqueiros e também por acontecimentos extraordinários - o comportamento cerimonial envolve sempre os homens se vestirem como mulheres e as mulheres como homens, ambos imitando e caricaturando o gestual um do outro. Bateson deixa claro que a teatralidade vivenciada nos rituais atenua e equilibra as diversas cismogêneses verificadas na sociedade.  

Processos de polarização, de cismogênese são exemplificadores de divisão. Desde o "divide et impera" de César, seguido ao longo dos séculos por diversos soberanos como Luis XI e posteriores, dividir para governar continua um lema de muitos. Toda vez que há divisão, há quebra da totalidade, há reducionismo. Acontece que os polos, as pontas, fazem parte do mesmo eixo. É arbitrário dividir seja o que for, de uma simples linha reta, à família, aos grupos e às sociedades. Polarizar é subtrair, é esconder o que unifica, o que estrutura o eixo. E assim, enfatizando um lado ou outro, vão se criando muros, divisões arbitrariamente construídas. Sempre que se divide se perde o eixo, consequentemente surgem os aglutinadores. Imaginar partes como dentro, fora, sujeito, objeto é estratificar, posicionar e criar engenhos artificiais.

O que está dentro está fora, organismo e meio, por exemplo, não são separados. Essas gestalten (globalidades) se explicitam e são percebidas como referenciais intrínsecos ou extrínsecos aos processos que se desenrolam. É a superposição de referenciais e contextos que cria metas e a priori (preconceitos) e é a partir disso que surgem os polarizantes, o que atrai, agrega e superpõe significados ao que está ocorrendo, gerando distração, pontos de vista outros que se acoplam ao que ocorre e ao que ocorreu. Nesses referenciais os agrupamentos passam a significar enquanto semelhança, objetivos comuns e objetivos contrários significados por medo, preocupação, alegria etc. A totalidade é fragmentada e as ondas de interesses são expandidas e engrandecidas. Nesse processo já nem se sabe mais o que ocorre, e assim o escondido é insinuado. Enfim, toda polarização, toda divisão resulta de fragmentação. Essa descontinuidade cria buracos, abismos que são como esconderijos, escoadouros de processos.

Toda vez que se briga, que se discute, que se torce para um lado ou para outro, se dificulta condições de discernimento, e então conceitos e referenciais são perdidos. Essa negação de processos esvazia e debilita tanto os indivíduos quanto as sociedades. A partir daí as frequentes discordâncias entre as pessoas (conflitos consigo mesmas e/ou com os outros) decorrem de lutas por vantagens e quando as posições não são claramente discutidas, tudo se passa como preferência: "prefiro o time A ou B, o político Y ou Z". Acontece que torcida polarizada e de apoio apenas expressa desconhecimento, não percepção da estruturação dos processos em andamento. Essas torcidas são efetivamente dirigidas para objetivos parcialmente apresentados, para lutas e apostas em supostos ganhadores sem nem sequer entenderem o jogo. São jogos dentro de jogos. Totalidades cortadas e englobadas que criam quebra-cabeças impulsionados por slogans, pseudo verdades e fake news.

Toda vez que se pensa e justifica polarização se afirma divisão e ao fazer isso se esconde, embrulha e distorce realidade, situações e vivências. Essas visões também equivalem a imaginar o mundo do sujeito como realidade interna e o mundo do objeto como realidade externa, como se fossem partes separadas. É o idealismo, é a negação da continuidade do estar no mundo, a negação de seus contínuos processos. Exatamente por isso só a mentira, o faz de conta, o egoísmo e o embrutecimento sustentam, servem de apoio a essas divisões estabelecidas. Polarizar é negar, não abranger a continuidade das evidências.

Quebrar a lógica dos processos é um método eficiente para criação de preconceitos, regras e mecanismos de controle geradores de medo.

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Sugestões de leituras relacionadas ao tema desse artigo:

- Interno e externo não existem

- Dividir para entender, dividir para limitar

- O denso e o sutil


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